quinta-feira, 23 de julho de 2020

OLGA TOKARCZUK: CONDUZ O TEU ARADO SOBRE OS OSSOS DOS MORTOS



Olga Tokarczuk ganhou o Nobel de 2019. Eu sei: o concílio sempre teve os seus esqueletos no armário (falo apenas de critérios dúbios, politicamente correctos, no pior sentido da palavra, e das injustiças daí decorrentes), mas ainda assim, pensamos que quando alguém que não conhecíamos "é distinguido" - estes lugares-comuns do universo dos prémios -, merece, no mínimo, que tentemos conhecê-lo, e nos pronunciemos.

Acontece, porém,  que a expectativa acaba condicionando, para o bem ou para o mal. E quando comecei a ler Conduz o Teu Arado, senti-me desiludido. A despeito de uma escrita muitíssimo interessante, que me tocou imediatamente, uma visão excêntrica (a da narradora, afinal uma excêntrica professora reformada, a braços com a sua tradução de Blake), um ambiente e um tema intrigantes, diversos e inexplicáveis assassínios que se vão sucedendo numa remota aldeia polaca, tudo isto é como que desperdiçado ao serviço de uma história que me pareceu maçuda, e de que me afastei paulatinamente, até que parei de ler e me agarrei a outros romances.

Porém, passado algum tempo (vários meses, de facto), lembrei-me dele e resolvi retomá-lo; a temperatura da expectativa e do interesse baixara, a memória da desilusão já não pesava sobre mim, e, pelo contrário, as inúmeras qualidades do livro começaram a fazer-se ouvir, a história ganhou um fulgor que nunca lhe sentira, de modo que voltei umas páginas atrás para reatar a leitura de um ponto seguro. O estado de espírito era outro, o romance é admirável e, já não estando eu previamente predisposto ao enfastiamento, fui gozando tudo quanto tinha para me oferecer.

A escrita, para já.  Ao contrário da instauração de uma "igualitarização" na redacção das palavras (muito em voga de novo, na recusa de dar mais  importância a umas snobes, optando por fazer desaparecer todas as letras maiúsculas, o que resulta,  quanto a mim, de uma digestão apressada e irrazoável do estilo do poeta William Carlos Williams), Olga Tokarczuk faz questão de que algumas palavras se escrevam com maiúscula, sem razão gramatical, sem outro motivo para além do poder misterioso e incontestável que delas se quer fazer emanar: "Noite", "Corças", "Horror", "Animais", "Morrer", "Alma" ou "Crepúsculo" são exemplos de palavras que merecem sempre maiúsculas (aliás,  na senda de Blake, que respira em todos os poros deste romance). Pode julgar-se um pormenor, apenas, mas é de pormenores que se gera a atmosfera de uma escrita.
Por outro lado, e considerando que a narradora e as suas teorias esdrúxulas sejam omnipresentes, tende-se para uma expressão  de uma inocência inventiva que é belíssima, como se ouvíssemos uma criança.

Os títulos dos capítulos  são sublinhados, como se de epígrafes se tratasse, por versos de Blake, o poeta a que, como já disse, a narradora se dedica. Não poderia gerar um efeito mais dramático: as palavras de William Blake são misteriosas, prenhes de sentidos ocultos, graves, nocturnas. Delimitam e adensam o carácter enigmático  do romance. Tudo são sinais, indícios, símbolos.

Com excepção de Dyzio, um jovem estudante que colabora nos trabalhos de tradução da poesia de Blake, desconhecemos os nomes das outras personagens. De quase todas, pelo menos. São tratadas por cognomes, Pé Grande, Papão,  padre Sussurro, Sobretudo Preto, Cinzentinha, etc, que, se introduzem um elemento caricato na relação do leitor com elas, nem por isso as distanciam ou as tornam menos personalizadas. Diria que tudo na personalidade e nos comportamentos delas é muito vivo, e se vai tornando significativo, aos olhos da narradora (e, por interposta pessoa, aos nossos) segundo o seu grau de respeito ou desrespeito pelos animais.

Será esta série de mortes violentas, em última análise, uma vingança dos animais,  o que faria da narrativa uma espécie de fábula? Ou a obra de alguém que age em vez deles, o que a tornaria antes um policial? É este romance - pergunto, por fim; e não posso responder, sem revelar mais do que devia - um elogio da causa dos animais e da natureza, mas, simultaneamente, uma advertência para quão pouco resta transpor, de modo a que a causa boa se transforme numa forma de fanatismo?

A cada um a responsabilidade da sua leitura.



terça-feira, 21 de julho de 2020

SHIRLEY JACKSON: O HOMEM DA FORCA


O meu movimento em direcção a Shirley Jackson foi provocado pela descoberta de uma peça fabulosa da ficção gótica, um conto chamado The Lottery, que, nos anos 40, explodiu como uma bomba entre os leitores burgueses de uma popular revista norte-americana: horror, choque, insultos, cancelamento de assinaturas da revista. Compreende-se, até certo ponto: saídas havia pouco da Guerra, as famílias aspiravam a optimismo, pediam fé, e o conto, que sobrevoava uma aldeia, picando sobre a população amistosa, para desvendar, no fundo daquela simpática  normalidade, um hediondo ritual secreto, foi recebido com verdadeira consternação.

Mas tropeçar neste conto de Shirley Jackson significou encontrar-me com outros tantos, da autora, compilados no livro onde se encontrava The Lottery e, assim, familiarizar-me com a sua escrita subtil, surpreendente na flexibilidade e na técnica, e com o seu poder para extrair atmosferas ameaçadoras a partir de ambientes aparentemente encantadores, ou com a força na sua inesperada aproximação ao medo ou à loucura das personagens.
Depois, para mim, veio, ainda, Sempre Morámos no Castelo, um romance carregado de tensão, de que aqui dei conta na altura em que o li.

O Homem da Forca principia no momento em que os Waite preparam uma recepção. Ao longo dessas horas, penetramos no  sufocante universo da família e, embora não  sejam explicitamente descritos (oh maravilhosa arte do não-dito, em que SJ é exímia), vamos adivinhando os fios da relação, psicologicamente pesada, que Arnold Waite mantém com a mulher e os filhos.

Num momento da recepção, alguma coisa acontecerá a Natalie, filha do escritor Arnold Waite. Talvez fosse violada por um convidado; mas a verdade é que o leitor não assiste à  ocorrência. "A coisa má ", como, mais tarde, Natalie se lhe referirá, de si para si mesma, é apenas sugerida. Os estranhos diálogos que Natalie, desde que a conhecemos, persistentemente entabula, no seu íntimo, com uma singular figura imaginária, já nos haviam alertado para a possibilidade de um desacerto, de um mistério mental, digamos assim, pelo que todas as dúvidas acerca do que efectivamente lhe terá sucedido naquela noite soam legítimas.


   Deixem-me agora conduzir-vos pela separação entre Natalie e a família, quando aquela ingressa na universidade; falo da forma como em magistrais pinceladas impressionistas, Shirley Jackson nos descreve a universidade (aspectos do seu espírito; das suas pretensões; as falhas e as sucessivas correcções no respeitante aos ideais primitivos, que viriam explicando a transformação desses ideais ao longo da própria história; o tipo de professores contratados) ou o quarto em que Natalie irá morar. Tudo nesses capítulos vertiginosos se faz de referências breves a caracteres acidentais (os jovens que, reunidos num café, haviam decidido fundar a universidade, como clarão sobre a génese dela; a "confidente oficial" das alunas que, na época de Natalie será já velha, a «Velha Nick») para, com unicamente esses traços, desenhar, ante os nossos olhos, a essência da universidade. E, do mesmo modo: alguns aspectos do quarto, como os furos feitos, com pregos, nas paredes, indícios de quadros pendurados pelos inquilinos que por lá passaram (a despeito das penalizações por furarem as paredes, que nenhum deles ignorava), ou as fantasias de Natalie descobrindo, no quarto vazio, de que modo poderia usá-lo ou decorá-lo, são, uma vez mais, linhas dispersas com as quais se nos revela infinitamente mais do que aquilo que de facto se expõe. Ou ainda: o extraordinário trecho que nos dá a ver a sala de estar onde, pela primeira vez, as raparigas desconhecidas se encontrariam, se mediriam, imaginando o que viriam a ser, ou viriam aadar-se, sempre a partir de pequenos pormenores sobre os quais cada uma delas haveria de compor a biografia e a personalidade imaginadas das outras.


Para dar conta dos ameaçadores contornos de sombra em que se (des)equilibra, periclitante, a mente mórbida e vulnerável da protagonista, o modo como a autora relata as conversas que ela tem com as demais personagens, em paralelo e em simultâneo com os seus pensamentos e com a sua própria leitura do que lhe dizem, torna-se penetrante e muito bem conseguida. O mundo exterior é-nos sempre dado a partir do ponto de vista de Natalie, dos seus medos e das suas crenças. Como, apesar de tudo, a narradora não é ela, só avançamos na compreensão da sua subjectividade até onde quem escreve quer e permite: e portanto o mistério nunca se dilui, as zonas equívocas nunca se desfazem, nunca a totalidade é desnudada, para eficácia de uma narrativa que percorremos como sobre uma lâmina, com um calafrio.

Toda a parte final de O Homem da Forca pode ser lido segundo interpretações completamente díspares e opostas entre si. O que parece não ser mais do que o encontro mágico de duas amigas perfeitas, cujas fantasias se comunicam de forma a descobrir um mundo secreto e traiçoeiro sob o mundo quotidiano, o exercício da loucura comum como brincadeira, possibilita várias leituras. A pergunta é sempre pelo que é real. É sempre por quem - e o quê  - existe realmente. Pela fronteira entre o sonho e a vigília, ou entre a vigília e a alucinação.

Num ponto remoto de todos e de cada um de nós, recalcada e renegada, a irracionalidade de Natalie é a nossa irracionalidade. O seu medo é o nosso medo.

sexta-feira, 17 de julho de 2020

JOSÉ d'OLIVEIRA GOMES: COISAS DO DIABO E ESTÓRIAS DO ARCO DA VELHA




                                                                              Não direi "gurus", apenas porque as pessoas em causa ficariam incomodadas e até ofendidas com o peso do estatuto que lhes depositava sobre as costas. Mas estrelas-polar, que até é mais bonito. Confesso: guio-me por elas, na descoberta do que é novo em matéria de literatura. O meu primo, sobejamente mencionado neste blogue; a Paula, que me deu a conhecer tantos autores espanhóis; ou a Elisa, que me veio apontando, sem até,  talvez, se aperceber, inúmeras pérolas ocultas.

Estas editoras praticamente invisíveis, estes poetas, estes contistas maravilhosos, cujas vias, na maior parte dos casos deliberadamente, optam pela fuga ao demasiado frequentado e conspurcado, são sempre relâmpagos secretos, objectos de culto no sentido daquilo que não é para todos os olhos, daquilo que só os paladares exquis merecem. (Não sou tão snob assim. Uso o termo pela graça).

Elisa Costa Pinto, no seu mural de facebook (que é, by the way, uma subida aonde se respira de outra forma, estética e tematicamente, no bom-gosto da simplicidade e da profundidade ao mesmo tempo), mencionou há pouco um livro, recente (2019), de breves histórias. Tão breves (brevíssimas!), que citava uma.
Tenho o livro nas mãos,  graças à desenvoltura de uma outra amiga, para quem tudo é rápido, a Cristina. Deixem que partilhe convosco a revisão do provérbio com que JOG conclui o seu livro: "O cão larva e a caravana pássaro."

A partir daqui,  ganhámos uma excelente varanda para apreciar o todo: a facilidade na síntese, no tirar partido de equívocos,  na forma deliciosa como se misturam registos e linguagens (vide o conto em que os discípulos, penando para chegar ao lugar, recolhido e de acesso difícil, onde se encontra o Mestre, e esperam, já diante dele, uma frase redentora e sublime, são surpreendidos por um dito coloquial de velhinha típica portuguesa: o melhor do cómico e do ridículo nasce quase sempre, aqui, da surpreendente intersecção entre o sagrado e o profano, o elevado e o quotidiano, o profundo e o mesquinho); o sentido de humor, a provocação, o delírio. E, principalmente, uma certa dose, a quantidade adequada, de sadismo cínico, que não deixa de nos arrepiar no momento em que, precisamente, nos faz rir.

Tudo no livro participa de uma espécie de fingimento pessoano. Já percebemos que o nome é um heterónimo, de que um editor, de cuja existência real desconfiamos imediatamente, nos dá uma nota biográfica hilariantemente improvável.

A Elisa fez a comparação com Mário-Henrique Leiria, sublinhando justamente que José d'Oliveira Gomes não fica a perder. Concordo absolutamente: se aqui reinventa o estilo e o espírito gin-tónico, não é como um epígono ou um imitador que JOG o faz: é como um discípulo digno e maior, um endiabrado e engraçadíssimo refazedor do caminho. Obrigado, Elisa.

quinta-feira, 16 de julho de 2020

PAUL JOHNSON: SOCRATES, A MAN FOR OUR TIMES


Sócrates é uma figura fascinante e profundamente revolucionária. Na vida e no pensamento, se podemos realmente falar de um "pensamento" socrático, para além daquilo em que Platão o terá transformado (e já lá vamos!). O que vemos nele é extraordinário : o homem de uma exigente coerência, que renunciou a uma carreira brilhante (ao contrário dos sofistas seus contemporâneos, que transmutavam as competências oratórias em dinheiro) e desprezava qualquer forma de propriedade, preferindo devotar a vida ao exame de si próprio e dos seus concidadãos, livremente,  com uma ironia, mas, ao mesmo tempo, uma cordialidade, de que perdemos o segredo.

Nietzsche acusou-o de um dos piores pecados na história da filosofia. O de ser o coveiro da filosofia trágica, a dos pré-socráticos, que expressava uma ligação às forças do cosmos - que Sócrates rompeu, inaugurando uma intelectualização no modo de olhar o mundo (e o mundo que lhe interessava era o dos homens e suas acções), que nos desprende e afasta, ensinando-nos a desprezar a realidade física, sensível, como mera aparência, impondo, como verdade, um mundo puramente ideal, descarnado, inflexível. Mas terá sido, realmente, Sócrates o responsável? Ou seria Platão,  em parte em seu nome?

O livro de Paul Johnson sobre Sócrates, apregoado por The Wall Street Journal como "spectacular", é de facto, por mais do que uma razão,  "espectacular". A tese central é a de que o Sócrates autêntico nada tem, ou muito pouco, que ver com o Sócrates que Platão terá inventado como arauto das suas próprias ideias, dele, Platão. A pretensão não é original: ao invés de Sócrates,  o que encontramos, na maioria dos diálogos platónicos, é uma ínvia personagem a que Johnson chama Platsoc, a mistura impossível e equívoca de alguma coisa de Sócrates com a forma e os propósitos de Platão.

Como os distingue Johnson? A esta pergunta, meu primo responde, com graça: tudo o que agrada a Paul Johnson é de Sócrates.  Tudo o que lhe desagrada é de Platão.

Descontando a parte de ironia, é um pouco disso que se trata. Raramente vemos argumentos convincentes para o separar das águas. Um guia estritamente sentimental parece mover o autor nesse trabalho. Atinge os píncaros quando ousa afirmar,  peremptório, a propósito de A República, que se trata de uma obra placsocrática, com a excepção "clara" de certas frases, que atribui indiscutivelmente a Sócrates.

Advertidos contra este pendor do ensaio, este enviesamento, considera-se a sua leitura extremamente cativante. É um livro bonito, muito bem escrito, que procura enquadrar o Sócrates histórico no seu tempo e na cultura ateniense. É,  sobretudo, o livro de um apaixonado por aquele sobre quem escreve. Com as consequências, as boas e as más,  daí decorrentes.

sábado, 11 de julho de 2020

JULIÁN FUKS: A OCUPAÇÃO


Preconceituoso, farejo os cantos de sereia nas badanas ou na contracapa: observo aquele exagero de prémios portugueses e brasileiros que o Autor veio recebendo desde a sua primeira obra. Sou sempre céptico, habituado à experiência de que, escritores ainda recentemente chegados e já sobrecarregados de prémios, revelam, a não ser excepcionalmente, mais uma carteira de bons contactos, do que uma surpreendente qualidade literária. É uma generalização abusiva da minha parte. Por algum motivo, a primeira palavra deste post é "preconceituoso"; mas trata-se de uma forma de prudência, também.  De me manter sereno perante os acenos de reconhecimento de algum olimpo de jurados.

Começo a ler e calo imediatamente a boca. (Outra tendência de que me resguardo: deixar-me impressionar logo às primeiras linhas). A escrita, preciosíssima, não engana.

Os capítulos são muito breves, entre uma página,  alguns, e três, a maior parte.  Dir-se-ia que para não prolongar demasiado o módico da dor suportável. Como se a concentração da tristeza precisasse de uma medida certa de duração. Um disparo curto de cada vez.

Existem, na novela, três focos; alguns críticos, a propósito do título,  Ocupação, entendem-nos como três diversos modos de ocupação: a de uma casa, um antigo hotel, na verdade, num primeiro momento, por um grupo de sem-abrigo de proveniências diversas, um dos quais, um sírio chamado Najati, convoca o narrador, porque deseja contar-lhe a(s) sua(s) história(s); (todos, ali, o desejam,  aliás,  e muitos contam fragmentos de passado: Carmen, Preta, Demétrio Paiva); o ventre da companheira de Sebástian, narrador, onde gesta @ desejad@ @ filh@ de ambos; e a cama do hospital onde o pai de Sebástian morre lentamente, ou luta lentamente pela vida, com um pulmão perfurado. São focos de tal modo separados, que dificilmente se tecem linhas que os liguem entre si. Mas essa economia do que nos vai sendo contado, não como uma história una, mas histórias que são mónadas, sem mútuo intercâmbio, fechadas sobre si, indiferentes a, ou ignorantes das outras, e no entanto se concertando na harmonia do narrador que lhes é comum, essa pessoa que as agrega, constitui parte da beleza muito particular do modo como esta voz brasileira nos traz até si, reconstituindo este pretérito tempo feito de tempos heterogéneos, vasos incomunicantes.

Mas, de facto, a ocupação mencionada no título é ainda, e sobretudo, uma outra: o processo, o movimento pelo qual o grupo conquista (é o termo) um prédio de onde os haviam expulsado, criando barricadas, plantando uma bandeira, preparando a resistência contra a polícia. "Você não entende, não é? Acha que todo o esforço é por nada, por um terreno sujo, por um prédio caindo aos pedaços. Você não sabe o que foi este lugar quando ocupámos pela primeira vez, não sabe que aqui era a casa da própria vida encarnada. Eu era criança, você não imagina a quantidade de lembranças que guardo daqui,  a quantidade de noites em que volto a este jardim, não assim em sombras, a um jardim ensolarado."

A autenticidade é uma marca de toda a narrativa. Nos agradecimentos finais, apercebemo-nos da existência das pessoas transmutadas em personagens; "Sebástian" é de tal maneira o próprio Autor, que em uma belíssima passagem, que nos oferece uma conversa, no hospital, com seu pai, o pai o trata por "Julián ": e Julián/Sebástian retorquiu: "Sim, mas aqui chama-me Sebástian". Apenas indícios para confirmar qualquer coisa que a leitura já tinha adivinhado. Não podia ser de outro modo. E não que, por si só,  a autenticidade seja um valor literário. Neste caso, é um valor na relação do leitor com o que está lendo. E não é pequena coisa. Não é pequena coisa.

quarta-feira, 8 de julho de 2020

SANDRA COSTA: BOLETIM METEOROLÓGICO


Lembro-me de, já na adolescência, um médico me ter pedido que lhe descrevesse certa dor que me fazia sofrer. Como se descreve uma dor? Ainda hoje não consigo. Vasculho palavras comuns, aplicadas habitualmente ao sofrimento físico, como se respondesse a perguntas, "é  aguda?", "é intermitente?", "é contínua?", mas regressa-me sempre a sensação de ficar aquém, de poder até morrer por não ter sido capaz de fornecer ao médico a informação adequada.

Compreensivelmente, é essa mesma sensação de impotência que me assalta quando procuro dispor de palavras para falar da poesia. Como se pertencessem a diferentes apartamentos do meu cérebro, a vizinhos que nem os bons-dias trocam, o "sentimento poético" e o "discurso analítico sobre" evitam-se mutuamente. A poesia é para ler (em voz alta, de preferência) e habitar afectivamente, enquanto a análise do poema me obriga a um distanciamento que contradiz a minha relação e o meu compromisso com o poema que me toca.

E no entanto, não posso deixar de me referir (e expor a análise possível) a Boletim Meteorológico, de Sandra Costa, cuja poesia não conhecia a não ser de alguns poemas colhidos, dispersamente, aqui ou ali.

Neste livro pouco extenso, de formato pequeno, agradável ao olhar e ao tacto, a "descoberta", irónica, mas não só, do léxico da meteorologia, como quadro metafórico privilegiado e critério consistente, permite uma leitura originalíssima e extremamente feliz dos sentimentos. O que faz ainda mais sentido, tratando-se de criar, poema a poema, uma temperatura da alma ("temperatura" porque se trata de um sentido específico, que não é, julgo, nem o olhar nem o ouvido. É outra coisa).

A consciência, a voz poética, evoca quase sempre, aqui, um sujeito frágil, desamparado, um junco em face das variações atmosféricas, que usa como uma espécie de luz, de medida e de linguagem para sondar a memória, os sentimentos, as perdas, que são, não apenas a memória, os sentimentos e as perdas pessoais, mas as da humanidade, em cuja História se reconhece e em que reencontra os seus próprios desejos e gestos:  "Assim, quando a noite começar Fevereiro,/ a norte do Cabo Raso, a ondulação poderá atingir/ os quinze metros, prevendo-se rajadas que talvez/ façam sucumbir o que de mais íntimo existe sob/ a penumbra de voz quando um homem e uma mulher/ sonham beijar-se pela primeira vez, ainda que milénios/ os afastem e aproximem de Troia."

A experiência do registo do tempo, ao longo do solstício, captando nesse registo sobretudo as mais subtis variações atmosféricas íntimas a um sujeito, na sua busca de comunicação, diferida, com um amado ausente, retomando todos os trilhos de poetas intemporais, faz de Boletim Meteorológico, na sua deliberada e encantadora contenção (eu diria: discrição) um livro a que se volta, a que tenho voltado.

domingo, 5 de julho de 2020

JOÃO TORDO: A NOITE EM QUE O VERÃO ACABOU


Anunciado como incursão de João Tordo no thriller, e com o sublinhado que, algures, terei lido (numa entrevista ao autor? em informação de badana?) lembrando-nos que o policial é, afinal, um género maior e que JT conhece bem os Chandler e os Stout,  A Noite em que o Verão Acabou é um romance noir de 667 páginas, que faz mais lembrar, na verdade, os de Joël Dicker: A Verdade sobre o Caso Harry Quebert, ainda há quem se lembre? Isso tanto pela extensão, até porque os americanos raramente se alongam assim para nos servir o assassino, como pelo ambiente reconstituído em torno de uma vilória norte-americana, aparentemente pacata, qual um lago que esconde, no fundo, um passado em que ninguém quer remexer; ou ainda por um certo tipo de personagens, a começar no narrador, aspirante, mais ou menos frustrado, a romancista, passando pela protagonista, que o convencerá a persistir na investigação da morte do pai dela; e acabando nos típicos cromos de uma povoação  como Chatlam: o repórter de um jornal de província, o sheriff, a empregada de um daqueles cafés de beira de estrada que nos habituámos a ver no cinema.

Evidentemente, fazendo a comparação, será justo acrescentar que se trata de um Joël Dicker francamente melhor. Se Dicker se deixa resvalar com certa precipitação para uma intriga com inverosimilhanças que se multiplicam em focos risíveis, João Tordo mantém o pulso, e constrói com firmeza uma odisseia entre o Algarve - onde, na sua adolescência, o português Pedro Taborda, de férias com os pais e a irmã, se sente atraído pelo perfil complexo e misterioso de uma família de norte-americanos, os vizinhos Walsh, mais os respectivos satélites - e os EUA, em que se reencontrarão anos mais tarde, lutando com (e contra) um amor que Pedro Taborda e Laura Walsh não podem mutuamente confessar - porque ele se casou, tem um filho, é fiel - e um crime que querem solucionar. Uma viagem,  portanto, no espaço e no tempo, num encadeamento ora nostálgico, ora vertiginoso, entre os anos da adolescência, os da juventude e os da maturidade, que o Autor nunca deixa descarrilar: diálogos convincentes, "à americana", linhas secundárias que estimulam o interesse (como a fraude vergonhosa através da qual Pedro Taborda conseguira que uma universidade norte-americana o admitisse, e está sempre a um passo de ser descoberta), e a máquina bem oleada que leva a que nos enganemos na descoberta do assassino, tornam A Noite em que o Verão Acabou um romance despretensioso, que se lê com muito gosto.




quarta-feira, 1 de julho de 2020

MARGARET ATWOOD: OS TESTAMENTOS


O parco e oscilante número de leitores que faz o favor, continuo a perguntar-me por que razão,  de seguir estes apanhados das leituras a que me vou dedicando (chamar-lhe "recensões" seria demasiado) sabe que gosto muito de Margaret Atwood. Da flexibilidade com que se move entre uma cultura sofisticada (a Bíblia, Homero) e o poder de construir máquinas narrativas eficazes, que mantêm o suspense e a surpresa. Ou seja, verdadeiramente, o cruzamento entre a erudição e o entretenimento (que em literatura é raro, é raro).

Também sabem, os que aqui me lêem, que apreciei sobejamente "Crónica de uma Serva", livro maior em que a máscara da ficção científica serve para o desenho de uma sombria alegoria do nosso tempo.

MA escreve, agora, uma sequela. Afirmando que o novo romance foi nascendo para responder a inúmeras perguntas que lhe faziam sobre o Estado de Gileade e "o seu funcionamento interno", construiu "Os Testamentos", premiado com o Booker Prize 2019.

Quais os problemas? Em primeiro lugar, a insistência em retomar e prolongar um romance que não carecia de qualquer continuação. Se o primeiro deixou dúvidas e deixou questões a que não respondeu, foi porque se tratava de dúvidas e de questões inerentes à angústia e ao desassossego que o retrato daquela sociedade provoca.  E assim deveriam permanecer: uma narrativa que se fecharia em torno de si própria,  densificada pelas incertezas que sempre a acompanhariam como parte do seu enigma essencial. O outro problema consiste em que quando nos propomos escrever um segundo romance em busca de um "happy ending" que o anterior se recusara a oferecer-nos, não há como evitar que esta continuação seja mais pobre, ou que seja, de algum modo, um abastardamento.

Teria usufruído "Os Testamentos", teria podido gozá-lo melhor  se não conhecesse o anterior? Talvez. Não sei. Mas aí é que está.  A própria MA impôs um critério e um termo de comparação e, desse ponto de vista, "Os Testamentos" desiludiu-me.

As histórias paralelas de três mulheres vão sendo narradas em segmentos separados: nada de particularmente original. Mas até as personalidades de uma espécie de abadessa (a madre superiora das "tias", cuja função lembramos todos quantos lemos a "Crónica..."); uma adolescente a quem decidem o futuro marido; e uma outra rapariga que, num país vizinho, tudo ignora sobre a sua verdadeira origem e a sua relação  com Gileade, são personalidades sem espessura, pouco convincentes, usadas como bonecas de cartão que se dirigem para um aparentemente imprevisível (mas, de facto  aguardado por todos os leitores) encontro no futuro, para benefício do desenvolvimento do romance segundo um plano sem grande fulgor.

MA parece, aliás,  aperceber-se da fragilidade desse motor. Ou sou o único com a sensação de que a partir de certo ponto se quer apressar a narrativa, abreviando os desenvolvimentos e encurtando as pontes?

O fim, sobretudo a partir da confluência entre as três histórias, que a autora desejaria realizar como uma epifania (a miraculosa descoberta da ligação entre a protagonista do primeiro romance e as personagens do segundo) tece-se, afinal, como uma revelação fraquinha. Sem lugar a qualquer luz nem estremecimento.