sexta-feira, 28 de outubro de 2022

PEDRO JUAN GUTIÉRREZ: FABIÁN E O CAOS

 

Não me interessava o amor. Não queria sentir amor e complicar a minha vida. O amor é um atilho. Eu precisava de liberdade total. Apenas sexo e cumplicidade. Sexo e liberdade. Sexo e loucura. Dizia-lhe adeus e ela nunca perguntou quando nos veríamos de novo.

        Pedro Juan Gutiérrez, Fabián e o Caos


Não é verdade que categorias como "autenticidade" e "coragem" sejam inúteis ou excessivas, quando se trata de falar de literatura.  Descobrimos a autenticidade, primeiramente, ao ler um autor que mergulha na própria matéria da sua vida, e ao perceber que não somos logrados com a encenação de sentimentos ou desejos; e, claro, a coragem, se essa exposição o faz descer ao politicamente incorrecto, ao moralmente inaceitável, ao que perturba e põe em causa os cidadãos civilizados que os leitores respeitáveis fazem questão de ser. Mais ainda, se o tocar em matéria sensível, animal e marginal, ocorre em regimes ditatoriais e persecutórios.



Gutiérrez enfrenta esse caos. Conta sempre a história do adolescente ou do jovem que foi, brutal, intensamente impregnado por uma sexualidade que não reconhece limites, e sedento de uma liberdade que o lança, ao mesmo tempo, no desrespeito pelas mulheres que lhe passam pela cama, amorosas, carentes e desejosas de um laço permanente (o qual, para ele, equivaleria sempre a uma tentativa de o domar e lhe impor a vida rotineira de um proletário, trabalhando na "fábrica de refrigerantes" ou "conduzindo um autocarro"), e pelo regime revolucionário de Fidel e de Che, em que ele desvenda a moral ascética e opressiva, ou as regras para o erigir do "homem novo", que restringem e recalcam as forças ocultas, a lava animal, a perigosidade do desejo, a inquietação, o horror a todas as formas de religiosidade.

Mas o narrador, esse Gutiérrez cujo nome, como no "Marcel" de Proust, coincide com o do autor do romance, desnudando-se impudicamente numa autobiografia mais vivida do que romanceada, não se confunde, evidentemente, com o "Fabián" do título. Estranhamente, Fabián é um outro tipo de marginal: devotado à música, que aprende, mas sabe que nunca tocará tão bem como a menina que se tornaria objecto do seu fascínio e da sua inveja, convidado a juntar-se a um grupo de entusiastas, mas ignorantes, músicos de rumbas e boleros, em casinos (tudo coisas que o castrismo virá a desencorajar: as rumbas, os boleros e, sobretudo, os casinos), homossexual apanhado flagrantemente em actos indecorosos, esta personagem que luta contra o caos do encontro com o desejo e a sexualidade, contra os preceitos e as expectativas de um pai violento e de uma mãe superprotectora, pareceria ilustrar um "desregulamento" situado na face oposta ao do narrador, e por isso, execrado pelo "macho" Gutiérrez. Mas, na verdade, não: porque o desejo e o erotismo, na sua ambiguidade, na sua informidade primitiva, tecem cumplicidades e alianças insuspeitadas. E o narrador, o outrora jovem macho aguerrido e egocentrista, revela uma sensibilidade, uma compreensão e uma empatia, quando narra a história de Fabián, que não temos dúvidas de que os únicos lados em luta são o dos oprimidos e o dos opressores. Seja a opressão em nome do que for, assuma o ser oprimido a forma que assumir. (Com excepção das mulheres, sempre duplamente oprimidas: pelo opressor e pelo próprio oprimido).

A autenticidade, em literatura, reside em grande parte na rara voz dos destituídos de tudo, os sem oportunidades, os vencidos da vida, que tiveram a sorte de intuir na escrita a forma de resgate e desafio ao destino.

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