segunda-feira, 15 de maio de 2023

MANUEL ALBERTO VIEIRA: UM PÁSSARO NO ARAME


Não se trata de um livro de poesia, mas tem, certamente, alguma coisa de obra poética. E nesta sua ambiguidade entre romance e poesia, tudo respeita, em primeiro lugar, à forma: a escrita.


Manuel Alberto Vieira não se limita a contar como se o mais importante fossem os episódios que nos quer dar à reconstituição no espírito. As palavras importam-lhe, a linguagem está longe de ser um mero veículo e, portanto, o autor tece, não apenas a história, mas a ficção, no sentido mais profundo da palavra: aqui, o que designo por ficção forma-se como uma história para ser lida e não vista; para ser poeticamente saboreada, e não apenas presenciada. Quase como se a palavra não estivesse ao serviço da história, mas a história ao serviço da linguagem. Na verdade, não se resume a uma coisa, nem a outra: tem que ver com a fusão de ambas, evitando a tentação de reduzir o "contar" a uma câmara, escondida, sobre o mundo. Ao invés, MAV refaz um mundo que não reflecte a realidade: cria a sua realidade. Claro que, para tornar tudo um pouco mais complexo, o real está profunda e dolorosamente subjacente, reconhecível: o real triste e desumanizado das pessoas.

 Esta seria sempre a opção que exige a leitura menos simples. Ao leitor não habituado, ou esquecido, deste modo de ler, as primeiras páginas, os primeiros capítulos, podem parecer demasiado densos. Se um aparente excesso linguístico não capta, de imediato, pela sua beleza, tende a afugentar. Só mais adiante estes quadros iniciais, incompletos e fragmentários, se vão unindo, à medida que linhas que não víamos se definem e cosem. Claro, aí chegando, já estávamos havia muito conquistados e o romance se nos tinha tornado essencial.

Lembro-me de um susto idêntico aquando da leitura de A Volta ao Mundo em Vinte Dias e Meio, de Julieta Monginho. Também a linguagem se cultiva, também o mundo se refunda como um sonho, também os laços se vão pressentindo mais tarde na leitura.

Um Pássaro no Arame é um romance desconfortável (o de Julieta Monginho também o era), ao expor a dureza da infância, ou da adolescência, vivida entre uma realidade exterior absurda, e uma família "disfuncional", desculpem o recurso à palavra da moda, que não abriga nem ampara, mas, pelo contrário, ataca, desdenha, agride.

A opacidade das personagens adensa o enigma de cada uma delas. Acompanhamos as suas palavras e os seus actos, mas, como em O Estrangeiro, de Camus, não penetramos no seu pensamento ou nas suas intenções. Em última análise, tudo dependerá de uma interpretação ou daquilo em que o leitor quiser acreditar. É por piedade que Alberto tem relações com a rapariga gorda? Porque mergulha Jonas no silêncio? Há uma intimidade de Kron, para além da sua brutalidade ou da sua obsessão por uma jovem liceal? Há uma intimidade de Miriam, para lá do medo e da raiva?

Não se afasta de nós esse cálice: numa experiência da dureza e da crueldade, não pode ser uma linguagem falsamente inclusiva o que nos guia; nada se nos poupa. Nenhuma fealdade ou deformidade ou horror ficam por dizer.
É um livro para quem não teme a inquietação. 


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