quinta-feira, 29 de dezembro de 2022

SIMON CRITCHLEY: TRAGEDY, THE GREEKS, AND US

 Coexistem, no ensino da filosofia no secundário, duas tendências contrárias. Uma, com que me identifico mais, concebe a filosofia como o elemento do espírito crítico e da permanente interrogação: importaria mais o espanto do que a certeza, mais o perguntar, como exercício reflexivo, do que o achar soluções, mais o amor pelo saber, que a etimologia da palavra continuamente relembra, do que a posse do saber. Mas a verdade é que, por outro lado, quando se apresenta a filosofia de Platão, de Espinosa, mesmo de Kant, apesar de Kant nos recusar o conhecimento absoluto, ou de Hegel, se está perante sistemas que respondem categoricamente às suas


próprias questões.

Claro: em alguns destes pensadores, se não em todos, assistimos a essa luta interna. E Platão, por exemplo, combate consigo mesmo de um modo muito notório - a ponto de haver quem distinga, na sua filosofia, entre uma parte mais genuinamente "socrática", em busca, e uma parte, digamos, "política", de um homem com a pretensão de fundar a sociedade perfeita.

O livro sobre que ora vos falo retoma esta minha perplexidade antiga, e explora hipóteses interessantes. Momento para lembrar que devo a obra ao meu primo, mon cousin d'Amérique, de certa forma, que regressa por curtos períodos de férias a Portugal e à minha companhia, carregado de bênçãos literárias. E deixemo-nos de coisas: para quem se interessa e procura, os EUA são o ponto alto da publicação e da divulgação do melhor em todos os campos, porque editam, entre a habitual porcaria, os estrangeiros mais estimulantes e alguns, poucos, norte-americanos que merecem atenção. 

A tese de Simon Critchley, em Tragedy, the Greeks and Us, é a de que encontramos, na tragédia Ática, o cerne de um espírito da ambiguidade e do dilema, do espanto em face dos poderes que movem o mundo, e da dialéctica entre a autonomia do humano e a necessidade (sob a forma das leis da natureza, do destino, do poder da tradição e dos deuses), de que os sofistas teriam sido os grandes intérpretes, e contém o mais autêntico movimento da filosofia como interrogação e demanda. A filosofia que nasce com Platão representa, de algum modo, a recusa dessa ambiguidade e a escolha da razão totalitária (a palavra pode parecer forte), que se propõe excluir, da cidade perfeita, os poetas e os artistas. 

Tantos preconceitos e clichés fomos formando em torno da tragédia, sobre como se encenaria e seria vista (e sentida), e por quem, que, ao desmontar algumas dessas convicções, o livro de Critchley poderia ter por título O que a Tragédia Não é (e Provavelmente Nunca Foi).

 Evidentemente, o Autor não tem mais certezas históricas. Mas esta sua reflexão acerca dos dois veios da filosofia, um dos quais desembocaria nos grandes sistemas, outro dos quais, intimamente ligado à tragédia e aos sofistas (se pensarmos, até, que os argumentos digladiados nas peças trágicas visam, à maneira dos sofistas, fazer da Causa fraca uma Causa forte) teria feito recair sobre si a crítica e o desprezo de que sobretudo os sofistas nunca conseguiram reabilitar-se, essa reflexão é magistral e poderosamente estimulante.


Sem comentários: