sexta-feira, 5 de agosto de 2022

DBC PIERRE: VERNON LITTLE, O BODE EXPIATÓRIO

 "Ela dá uma espécie de gargalhada irónica; só pode ser irónico quando se dá uma gargalhada e se soluça ao mesmo tempo."


A primeira coisa que podemos dizer acerca deste romance é que se trata do retrato, cheio de um ácido sentido de humor, de uma certa América. Por "uma certa América" entendemos, é claro, a daquelas cidades texanas, junto à fronteira com o México, que conhecemos sobretudo do cinema: pessoas que se conhecem e interferem na vida umas das outras, mulheres, frustradas, de tipos sem horizonte, homens que bebem porque a vida é insuportável, batem nas esposas ou abandonam-nas, uma dada família cujos membros estão em todos os postos, da polícia à Câmara, charlatães de segunda classe e, claro, adolescentes que se interessam demasiado cedo por armas, ou escolas onde ocorrem massacres porque um desses jovens se fartou de ser vítima e, além disso, tem uma espingarda ou uma pistola à mão de semear.

A tragédia permite um tipo de humor que corta como faca. Sucede quando e porque há um desencontro entre a grandeza dos acontecimentos terríveis e a ridícula pequenez e incompreensão da cruel sublimidade do destino, por parte dos que o sofrem. É, ao contrário da tragédia grega, aquilo a que chamamos tragicomédia. Não é um humor para todos os estômagos, mas DBC Pierra executa-o com mão de mestre. A personagem principal, o Vernon Little do título, que é também o narrador, lembra imediatamente Holden Caulfield, de The Catcher in the Rye, do genial Salinger: a mesma linguagem desbragada, a mesma inteligência arguta, uma idêntica sensibilidade, que se esconde no tom trocista, e a mesma incapacidade de se entender com um mundo


adulto, que o não compreende e persegue.

Na verdade, neste caso, persegue, de facto, não se trata de paranóia juvenil. Vernon Little serve como bode expiatório de um massacre perpetrado, na escola, pelo seu amigo, Jesus, que se suicidará de seguida. O povoado está inconsolável, mas aos familiares enlutados dos jovens mortos, parece quase insuportável que se não possa castigar alguém. Resta Vernon, cuja amizade com Jesus o eleva a potencial cúmplice. 

E assim, aos 15 anos, Vernon Little, objecto do jogo de gente que o leitor não esquecerá, como a própria mãe, neurasténica, o homem que se faz passar por jornalista, ansioso por aproveitar a história de, como apresenta a sinopse, "um adolescente com um talento especial para estar no sítio errado à hora certa", tudo fará para escapar ao destino que se lhe impõe. 

Primeiro romance publicado por DBC Pierre, esta estreia literária viria a ser distinguida, por unanimidade, com o Booker Prize (2003). 


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