sábado, 9 de julho de 2022

KEN FOLLETT: O BURACO DA AGULHA

 Principio por uma citação aparentemente anódina:

"O vento e a água continuavam na sua eterna disputa, o vento descendo para provocar as ondas e o mar chiando e cuspindo ao chocar contra a terra, os dois condenados a lutar para  sempre porque um não podia ficar calmo enquanto o outro estivesse ali, mas nenhum dos dois tinha outro lugar para onde pudesse ir."

Não escolho este trecho apenas porque constitui uma descrição muito bem escrita, nem por causa do animismo romântico que, atribuindo emoções e intenção às forças cegas da natureza, introduz uma profundidade e uma tensão dramáticas na visão que o leitor tem da ilha em que um casal vive a sua recuperação, após um acidente, mas porque, implícita e subtilmente, a eterna luta entre o vento e a água reflecte, expõe (e explica, mais do que o narrador quereria ou deveria fazer sem se tornar excessivo) o estado de espírito que impregna a relação entre Lucy e David Rose. Chocam porque a frustração é terrível, porque são duas pessoas cujos sonhos se desagregaram e porque, na ilha agreste, não podem amar-se, mas também não podem separar-se: "nenhum dos dois tinha outro lugar para onde pudesse ir."



Este é o primeiro romance - o primeiro romance a sério, excluindo novelas de aventuras e guiões - de um Autor que viria a ser bem conhecido, Ken Follett. Por que razão, perguntava-me alguém, um "primeiro romance" não pode ser já uma obra-prima? Por que esperamos, de um começo, as falhas e incompetências do autor estreante, cuja qualidade apenas a escrita posterior poderia resgatar? Não sei. Mas, no caso concreto, porque este primeiro romance, apesar de algum sucesso na época, desapareceu sem quase deixar rasto, recalcado pela produção de obras tão marcantes como Os Pilares da Terra.

Escrito na década de 70, O Buraco da Agulha revisita os anos 40 (o início de 1944) e, no ambiente de guerra, retoma as dificuldades, os medos e as esperanças de personagens que, lendo hoje, resistem absolutamente como personagens, psicologicamente profundas, vivas, verosímeis e interessantes. O próprio Follett, num prefácio em que se debruça sobre o romance, décadas volvidas após a sua primeira edição (como ele gosta de fazer), lembra que haver tomado como protagonista uma mulher, Lucy Rose, era, então, desconcertantemente novo. O frente-a-frente entre essa mulher desamada, e Faber, o implacável ("poderoso", escreverá Follett) e tenebroso espião ao serviço dos alemães, é um imprevisível e fortíssimo motor de suspense.

Mas, sobretudo, o modo de narrar revela já uma perícia extraordinária: diferentes situações e personagens que vão surgindo paralelamente, sobre um fio invisível que se prepara para os confrontar, numa estrutura muito bem conseguida, que nos mantém apreensivos e cativos.

E no cerne desta intriga de guerra e espionagem, um facto histórico extraordinário: "uma farsa gigantesca, meticulosa, cara e ultrajante". A encenação da reunião de forças, armas e aquartelamentos, em pontos determinados de Inglaterra, de modo a levar os alemães a pensar que era a partir dessas zonas e, portanto, numa certa direcção que se preparava a invasão, mantendo secretas as verdadeiras movimentações, muito longe dali. Cenários em contraplacado, aviões ou tanques que não eram mais do que uma espécie de carros alegóricos, expostos para ser vistos do ar e induzir em erro, isto é, fazer o inimigo crer que o desembarque, no continente,dos aliados, seria em Calais, e não na Normandia.

Sem comentários: