sábado, 16 de julho de 2022

FERNANDO ARAMBURU: O REGRESSO DOS ANDORINHÕES

 É inevitável, se conhecemos bem a obra de uma Virginia Woolf ou de uma Elena Ferrante (e, para a conclusão, basta-me referir estes dois exemplos), reconhecermos que o romance tem género. Mesmo que não tivéssemos informação sobre se estávamos a ler um texto escrito por um homem ou por uma mulher, e independentemente do sexo do/a narrador(a), a intuição revelar-se-ia certeira. Há uma sensibilidade inconfundível, um olhar, uma maneira de valorar, e a importância de problemas a que subjazem já escolhas emocionais. Quando se aventou a hipótese de que, sob o nome "Elena Ferrante", que ninguém sabia realmente quem fosse, podia ocultar-se um escritor, um homem, eu sorri interiormente, sentindo o maior dos desprezos pelos inventores da suposição. 



Do mesmo modo, existe uma escrita masculina, talvez mais difícil de 


detectar enquanto tal, porque, em geral, foram sempre os homens a impor o padrão, e um modo de ver ou narrar passaram, nas suas características típicas masculinas, por "universais". Enquanto a consciência de uma autora foi sempre uma excepção que se deixava ver, a consciência de um autor disfarçava-se melhor e a sua voz soava como normal

Olhemos para O Regresso dos Andarinhões abstraindo, por um instante, de qualquer dimensão histórica ou política. Sem nos determos numa avaliação ética do conteúdo, esquecendo que a norma é, hoje, a do politicamente correcto, de tal forma que a grelha masculina deveio excepcional e, de alguma forma, "errada" (a ponto de se ter tornado quase inaceitável escrever-se como um homem), este é, contudo, o romance de um homem até à medula. As emoções, a interpretação dos factos ou dos conflitos, a tristeza, são as de um homem. O desamparo também. E se um leitor do sexo masculino, como eu, consegue compreendê-lo até à identificação (ainda que mantendo um distanciamento ideológico, e julgando-o, racionalmente, pelo seu egoísmo ou pela sua incapacidade de comunicação), uma leitora verá, provavelmente, apenas um bruto: um incapaz de lidar com o novo poder das mulheres. 



Estou a simplificar, evidentemente. A apreciação assumida por uma autora e uma psicóloga como Ana Cristina Silva mostra-o. Mas é um romance que pede esse acompanhamento psicológico, complexo, subtil, sem maniqueísmos, nem a busca de distrinça entre os verdugos e as subjugadas. Uma leitura não ideológica, de facto: tão só compreensiva (de tudo, de todos, de todas) e compassiva.

Já no extraordinário Pátria era precisamente isto que me fascinava: todos têm voz, e as vozes, mais ou menos condicionadas, opostas, exprimem o seu sentido e o sentimento que as justifica. Aqui, claro, menos: o ponto de vista é o do narrador, e é ele que fala sobre, e julga, as outras personagens. É o ponto de vista de um homem que não fez as pazes com o pai, critica a mãe, embora se apiede da sua condição, não suporta o irmão, ama e odeia a mulher com quem deixou de se entender, e de quem se divorciou, procura manter com o filho "estranho" uma relação de camaradagem e decidiu que se suicidará antes de um ano volvido sobre o início da escrita destas notas. É um professor de filosofia do ensino secundário (como não me identificaria com tal narrador?), amargurado, falhado, infeliz. Mas percebemos que as suas razões e argumentos são frágeis e pessimistas. Se a palavra anti-herói se aplicar, há-de aqui servir mais do que nunca ou do que em qualquer outro lugar. É um romance sobre o homem como esfera de perda de poder, e como fracasso.

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