sexta-feira, 10 de junho de 2022

IRENE VALLEJO: O SILVO DO ARQUEIRO

 

Antes de mais, hei-de confessar que aprecio imenso Irene Vallejo e o seu modo subtil de conjugar a leveza do entretenimento e o peso do saber, em obras onde a História (por exemplo a do nascimento do livro e da invenção da sede pela leitura) se nos oferece narrada através de uma multiplicidade de histórias muito vivas e saborosas, sobre imperadores que não sabiam ler (mas haviam desenvolvido um fascínio por livros, e mandavam buscá-los, reunindo-os), guerreiros, sábios, escritores e leitores vários, que transformaram o conceito e o objecto, ao longo de séculos, nestes volumes simples e manuseáveis, que transportamos connosco e nos possibilitam o mergulho em outros mundos.                                                                               

 O Silvo do Arqueiro é um romance da autora. Comprei-o com certa ansiedade, principiei a lê-lo com um interesse que, estranhamente, contudo, parecia ir esmorecendo até à desistência, vá-se lá perceber por que ocorrem estas falhas de comunicação, até que, em dado momento, inesperadamente, a chama reacendeu, o interesse brilhou, percebi que o problema devia ter sido meu e do momento da minha vida em que iniciara a leitura, pelo que voltei ao princípio, cheio de fome.


Alguma coisa no romance é originalíssima. Diferentes personagens vão narrando a sua parte de uma história complexa, com diversas correntes, e não, não seria a mencionada pluralidade de olhares, em si mesma, a novidade. Embora, aqui, o mecanismo que a estrutura funcione magistralmente: refiro como particularmente tocante a mudança de perspectiva, como se se passasse, até, de um elemento para outro, quando Eneias primeiro, Elisa, depois, ignorantes do que o outro escrevera, ou pensara, contam o mesmo acontecimento: a forma como, escapando ao combate contra os nómadas que os haviam emboscado, e secretamente guiados pelo deus Eros (cuja presença Elisa pressente, sem ver), se abrigam da tempestade numa gruta, se aproximam um do outro, e se amam. Nas narrações, diversas, do mesmo acto, que extraordinária transformação de olhar e de sentimentos - do desejo de Eneias, do seu orgulho por ter salvado Elisa, da ambição de sentir-se amado por quem o faça esquecer a esposa que o traíra, para o receio, dela, de que, ao despi-la, o homem descubra as imperfeições físicas da mulher já não jovem, já madura, para o seu desejo delicado, terno, medroso e, por fim,  para a sua entrega. Entrega, mas com a liberdade de uma escolha, e a consciência de que o será, ainda que contra tudo e todos.

A originalidade reside, no entanto, em outro aspecto: que neste universo, aos deuses seja concedida realidade. Eros, já indicado, tem o lugar de um dos protagonistas e um dos narradores, como Eneias, Elisa [Dido], Ana; (também Vergílio surgirá, personagem de um outro tempo, mas com outro estatuto, e a quem só muito mais tarde leremos/ouviremos a fala na primeira pessoa).

Ora, embora, como escrevi, haja deuses que atravessam dimensões para interferir na vida dos humanos, eles apercebem-se de que as histórias que os homens e as mulheres contam, as suas versões dos acontecimentos, são sempre inflaccionadas, tendem ao mito: Eros observa-o, com alguma ironia e uma ponta de inveja. Eles não conseguem ater-se aos factos, nem compreender as causas reais: imaginam que os move o amor, ou a virtude, ou outros sentimentos e desideratos sublimes. O Bem e o Belo, nunca a economia, as riquezas, o comércio, o território. Que fantásticos ficcionistas, sublinhará o deus.

É essa mistura entre o mitológico e a desconstrução do mito como ilusão e falsa narrativa, reveladora, porém, da criatividade humana, o que torna este romance um paradoxal mito que lê, elogia e supera a experiência mitológica.

A escrita de IV mantém uma aura poética e retórica felizes, muito bela, que se adequa ao discurso do troiano, da rainha de Cartago, da vidente ou mesmo do deus. Remeto para um único exemplo, este: "Acaricia a superfície da água, movendo as escamas de sol" e, seguríssimo de os ter impressionado, nada mais acrescento sobre o assunto.

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