quarta-feira, 5 de outubro de 2022

MANU LARCENET: O COMBATE QUOTIDIANO

 Para além do desenho, extremamente belo nos seus falsos simplicidade e desleixo, a obra-prima de Larcenet toca-nos pela narrativa quase autobiográfica, magoada, entre o choro e o riso. Eu diria que já esta combinação é nova em banda desenhada: se o autor quer contar uma história profunda, não apenas humorística, procura um desenho realista. "Maus", de Art Spiegelman, claro, era já a excepção. Não só as personagens são ratos, como as imagens, de uma simplicidade desconcertante, acertam primeiro, enganadoramente, na veia do humor. Parece desacertado para nos expor o passado dos judeus em campos de concentração, ou as cicatrizes de um pai que sofreu a dureza de haver sido uma vítima de Auschwitz e dificilmente conseguirá, depois, perdoar ao mundo ou abrir-se ao filho.




Neste Combate Quotidiano, é também o desenho risível, a caricatura, que se usa para se contar a vida de um obsessivo, como nós todos, entre a dificuldade de continuar o seu trabalho como fotógrafo de guerras e desastres, um pai em descida rápida para o esquecimento, um irmão com quem consegue protagonizar eufóricos regressos à infância, uma namorada cujo desejo de laço e permanência desperta todos os medos, um amigo recente a quem não sabe se consegue perdoar quem descobre ter sido no passado. Demasiadas feridas, um existencialismo angustiado de mais para se conseguir, a partir destes elementos, fazer humor. Na verdade, Larcenet consegue-o, como todos os que são capazes de rir de si, e de rir do sofrimento, sem o manipular ou superficializar.

É uma compreensão cristã, num sentido muito puro da palavra, não religioso, digamos, que está na raiz desta novela gráfica. A compreensão um pouco perplexa, torturada, mas que se quer tentar até onde possível, daqueles que não sentem nem pensam da mesma forma que nós,  tiveram passados inaceitáveis, ou fizeram escolhas morais e políticas que abominamos. Sob as diferenças, a humanidade. E mais do que apenas isso: o ter de compreender os motivos dos outros. Complexo, bem sei, e não isento de riscos; tenho a noção de que nem tudo pode ou deve ser perdoado (aliás, compreender não significa necessariamente aceitar); mas, aqui, nesta história maravilhosamente oferecida, neste livro, em nenhum momento se ilude a complexidade.

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