sábado, 6 de agosto de 2022

ANDRÉ GIDE: AS CAVES DO VATICANO

 Já pensava, sempre pensei, aliás, desde que pela primeira vez o li, que André Gide é o mestre da elipse. Seguimos uma sua história com interesse e prazer, mas necessitando da concentração que, se se descontrai, leva a incompreender, por um instante, uma sequência que Gide não quis nem precisou de tornar explícita.

Um outro aspecto que este romance revela é a atenção do autor a gestos e pormenores do quotidiano, que utiliza tão bem: uma maneira de sentar, uma expressão conseguida com as sobrancelhas, a descrição de quase nada que introduz, na narração, uma vivacidade encantadora.



O modo como Nietzsche, seguramente, e talvez Dostoievski, o marcaram, fá-lo elevar personagens pouco menos do que comuns, a caracteres que, em situações-limite, se mostram de uma inesperada profundidade trágica. Algum desconforto relativamente à existência, que os morde por dentro e os torna conscientes da sua inautenticidade, provoca-lhes súbitas angústias e sobressaltos de liberdade.

O título deste romance, hoje, parece deslocado. Vejam ao que o associam: As Caves do Vaticano. Não remete para um tipo de livros que se tornaram, entretanto, populares, sobre os pecados e os segredos da organização de que o Papa é o líder? Na verdade, é a história de famílias unidas por casamentos, de um filho bastardo, desconhecido, até então, dos meios-irmãos, e de um grupo de crápulas que concebe o extraordinário plano de convencer alguns inocentes de que o Papa fora raptado, aprisionado e substituído por um falso Papa, de modo que haveria que juntar dinheiro para resgatar o legítimo. Constaria, do que se propala sobre o rapto, a conspiração de lojas maçónicas e assistimos, ao longo da narrativa, a conversões inesperadas, amores impossíveis e o frente-a-frente de um protagonista com a liberdade absoluta, sob a forma da possibilidade do mal gratuito.



Alguma coisa no movimento deste romance tem uma dimensão cândida e improvável, como numa aventura de Arsène Lupin. Típico de um romantismo de época, se nos lembrarmos de que As Caves do Vaticano foi publicado em 1914. Mas a escrita, clássica e muito bela, é de uma força que resgata de certas imperfeições. Proust escreveu a Gide: Por fim, li o seu romance com paixão. É verdadeiramente uma Criação, no sentido genesíaco de Miguel Ângeli; o Criador está ausente, é ele quem tudo faz, e não é uma das criaturas. Vejo-o a determinar as idas e vindas de Fleurissoire como o Deus colérico da Capela Sistina a fixar a Lua no Céu.

Se Proust o diz...

Sem comentários: