sábado, 13 de agosto de 2022

TATIANA SALEM LEVY: DOIS RIOS

 "Vim até Dois Rios para poder sair de Dois Rios, e ao mesmo tempo sinto a força que tenta me deter, o sonho persistente de que os dias voltem a ser o que eram: eu, uma menina, meu irmão ao meu lado."


Trago-o da Biblioteca, sem referências. Não conheço a autora, não ouvi falar do livro, o título não me atrai particularmente. É obscuro. Não fa


ço ideia da razão por que o escolhi.

Abro a capa verde, dura, da excelente Tinta-da-China (mas será ainda a mesma? e será realmente a editora quasi-marginal que, na minha imaginação, sobreviveu sem abdicar da qualidade?), inicio a leitura e, imediatamente, sinto-me a respirar o ar puro de um Português, bem escrito, de entoação brasileira, as frases a levar-me com elas de uma forma inebriante. Gosto tanto do Português do Brasil quando pela pena dos melhores, a correcção em que palpita uma flexibilidade impossível entre nós. Tatiana Salem Levy escreve muito bem. A sua escrita é uma contínua descoberta. Um breve exemplo, apenas: "Minha vontade de beijá-la de repente se tornou vontade de beijar o mundo inteiro, as crianças, os velhos, as prostitutas, as gordas, os sarados, as magras, o homem da barraquinha, o surfista, a mulher do sanduíche natural, o mar, a areia, as palmeiras, de sair voando e beijar os chilenos, os argentinos, os porto-riquenhos, os angolanos, os russos, os japoneses, as aves, os elefantes, o chão, a terra batida." Quanto saber e quanta arte no aparentemente gratuito desta enumeração. 



No Rio de Janeiro, onde a narradora da primeira parte do romance, que se chama Joana (é o seu nome e o nome dessa primeira parte) encontra e se deslumbra com Maria-Ange, tem a sua génese a luta entre duas esferas da realidade, quase diríamos entre duas realidades: a mãe obsessiva-compulsiva, silenciosa, incapaz de pisar as pedras brancas da calçada, abrindo e fechando vezes sem conta a porta, ou lavando, no duche, as mãos até as fazer sangrar, a ausência de um irmão que se dispôs a correr mundo, deixando-a com a mãe como se ela não estivesse realmente doente, ou como se fosse da responsabilidade da irmã, e um passado que a cerca e oprime, acumulando-se até desde antes de ela ter nascido; e a liberdade e o grão de loucura introduzidos pela presença de Marie-Ange, fazendo possível o que os anos e a rotina haviam tornado impossível, abrindo janelas numa vida de mulher solitária e cuidadora infeliz. Com a sua beleza feita de imperfeições (talvez os olhos assimétricos, a cicatriz de um transplante de coração...) animadas por uma luz e por uma alegria incontidas, Maria-Ange, como o nome indicia, é um anjo salvador. Metaforicamente, claro.

"Dois Rios" é o passado. Escrevi bem: não "representa" ou "significa", mas "é" esse passado nunca avaliado. A viagem, com Marie-Ange, à pequena povoação, sustentada pela colónia prisional onde o tio de Joana fora prisioneiro político, e viviam os avós maternos e a mãe dela (esse avô, precisamente um dos guardas prisionais), entrelaça as duas esferas e os dois tempos da sua realidade. A amante francesa pressente, mas não compreende inteiramente o significado de Dois Rios e de seus habitantes, impregnados de memórias profundas: as férias de Joana e de Antonio, em casa dos avós, a morte do pai, a mãe tornando, em lágrimas, para os buscar, o afastamento de Antonio, o progresso das obsessões de Aparecida. [Na verdade, perceberemos que Marie-Ange sabe  sobre tudo, mais do que julgávamos, mas fiquemo-nos por aqui].

A segunda parte do romance, que tem por título Antonio, tem como narrador o irmão de Joana e, como objecto, a sua versão do passado, ao mesmo tempo que a história do seu amor pela mesma Marie-Ange, noutro lugar e muito tempo antes de ela ter viajado ao Brasil e conhecido Joana.

A forma como, no todo destas duas partes, contrastam e se contradizem a visão de Joana, e a de Antonio, sobre os factos, mostra que, na tentativa de os recontar, cada um deles inventa e omite. E, contudo, nós, leitores, percebemos a verdade, através desse choque de interpretações e de mentiras. 

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