sábado, 11 de abril de 2015

LEOPOLDO ALAS: A CORREGEDORA


     Eis um livro sobre o qual, a vários títulos, faz muito sentido escrever um comentário em Profissão: Leitor. Leopoldo Alas não é um autor conhecido do vulgo e em La Regenta deparamos com uma imensa obra do século XIX, mencionada por Mario Vargas Llosa como «o melhor romance espanhol [desse século]»; "imensa" tanto pela qualidade como pela extensão: seiscentas e tal páginas repartidas por dois tomos tornam-na um daqueles romances demorados, desusadamente demorados, em que se nos pede que adiemos o virar da folha, porque tudo exige o deleite segundo um tempo e um ritmo próprios. Dou o exemplo de uma passagem que sublinhei - não adianta nem atrasa rigorosamente um passo no desenvolvimento da trama, seria perfeitamente dispensável no desenho do esqueleto da história, e no entanto é fundamental para nos conduzir à penetração num certo estado romântico de beatitude e alegria da protagonista:
    
     «De ramo para ramo saltavam pardais e tentilhões, sempre de bico aberto, mas nunca chegando a cantar decentemente, distraídos com qualquer coisa, travessos, a chilrear em vão.» [Não é delicioso?] «De vez em quando, caíam folhas secas dos ramos para a fonte; flutuavam às voltas, numa lenta marcha e, aproximando-se da estreita abertura por onde a água saía, começavam a deslizar rapidamente em linha recta e precipitavam-se na corrente, onde a superfície lisa se convertia em ondulada prata. Uma alvéola debicava no chão e debicava aos pés de Ana, sem medo nenhum, fiada na agilidade das asas; dava voltas e voltas, varria o pó com a cauda, aproximava-se da água, bebia, chegava de um salto à sebe, escondia-se por um momento entre os ramos mais baixos da amoreira, e, por pura curiosidade, voltava a aparecer, sempre alegre, sempre pespineta; quedou-se imóvel por um momento, como que a decidir-se; de repente, assustada, só por medo, sem o menor motivo, foi-se embora, com um voo rápido e direito ao princípio, ondulante e pausado depois, perdendo-se na atmosfera que o sol oblíquo tingia de púrpura

     Quem me deu a conhecer o autor e, ainda não contente, me emprestou o livro, uma tradução perfeita, de Joana Morais Varela, que a Contexto publicou em 1988, chamava-me a atenção para a semelhança entre esta escrita e a de Eça de Queirós. Sem dúvida. Para além da época e de um certo carácter ibérico que os une numa eleição de temas e formas, aproxima-os a qualidade da obra. Não me atreveria a sugerir que Leopoldo Alas é até superior a Eça de Queirós, porque ele há coisas que nem a mim próprio ouso murmurar. Mas assemelha-os a ironia, em Alas porventura mais leve e mais subtil, um fôlego espantoso e paciente para o entretecer de linhas diversas e dissemelhantes numa unidade firme, e um génio da escrita que os faz reinventar as figuras de estilo inesperadas e criar a frase expressivamente dramática ou cómica.

     Trata-se, como em O Primo Basílio, do estudo da tentação no seio da alma feminina virtuosa. É certo que visão é projectada pelo olhar de um homem: mas em Alas a visão em causa é uma visão carregada de seriedade e compreensão, um pouco estupefacta, talvez, mas sempre consciente de que o que se espera não é que se arvore em juiz. E, portanto, é sob o pano de fundo da mediocridade da cidade de Vetusta que se digladiam aspirações e inclinações no interior de almas nobres. A mediocridade de Vetusta, escrevi: a esse propósito, aquilatem a finura da ironia na forma como Vetusta nos é apresentada, na frase com que o romance inicia: «A heróica cidade dormia a sesta

     Ana, a corregedora, é uma personagem feminina digna de um panteão onde não repousam [apenas no sentido em que o seu estado natural não é o repouso] aquelas que mais revisitamos.

segunda-feira, 16 de março de 2015

ROBERT M. PIRSIG: ZEN E A ARTE DE MANUTENÇÃO DE MOTOCICLETAS


     Um amigo meu com interesse e sentido de humor, biólogo que não desdenha visitas amorosas à filosofia, andava lendo, há algum tempo - na língua original - Zen and the Art of Mortorcycle Maintenance. Percebi o seu entusiasmo. Prometeu que mo emprestaria assim que o acabasse. Fê-lo.

Há uma antiga tradução para português, na Presença. Mas mesmo essa não é facilmente encontrável, a não ser em alguma biblioteca ou encomendando-a. Inicio a leitura e compreendo a euforia do meu amigo, ainda que não seja um livro feito para ele. Não o digo com arrogância. Não é provavelmente um livro feito senão para uma pessoa, e essa pessoa sou eu.

Cada leitor terá a sua própria experiência, até certo ponto intransmissível. Mas Zen e a Arte de Manutenção de Motocicletas baralha o maço das questões que mais importância têm ganhado para mim na complexa fase da vida por que passo; por um lado porque me identifica - e com que pormenor: sou mesmo eu! - como uma personagem: alguém que se distancia criticamente da tecnologia, infeliz sempre que tem de lidar com ela, evitando quaisquer novidades, resistindo aos progressos que melhorariam significativamente a comodidade do seu quotidiano; pessoalmente, preferi sempre que houvesse um mecânico, um técnico, um especialista ou uma amiga devotada para consertar as avarias e repor nos carris [frequentemente através de operações muito simples] o que, nas minhas patas, tende a descarrilar. Por outro lado, o autor que me interpela e interroga sobre a inépcia que a cada passo revelo, fá-lo a partir do meu território. O que é perturbador. Ou seja: a sua reflexão constitui-se na familiaridade com os filósofos, os antigos ou os modernos, Platão, Descartes, David Hume ou Kant [e devo dizer que, acerca dos Antigos, reformula em termos extraordinariamente inovadores e interessantes o derradeiro sentido da luta entre Sócrates - o mesmo seria dizer: Platão - e os sofistas, com o desenho final de Aristóteles, responsável pela nossa compreensão, porventura errada, dessa luta, e suas consequências para a História da filosofia.] : é à luz das ideias dos filósofos, que se analisa a inabilidade, para a tecnologia, de certos artistas e de certos intelectuais, mostrando que se trata de um divórcio imbecil, inútil, equívoco e empobrecedor.

Robert Pirsig foi um destrambelhado. Num certo ponto do seu passado, o professor de retórica seguiu tão radicalmente as próprias questões, que se afastou do mundo entendido como denominador comum, aquele em que nos encontramos e comunicamos uns com os outros, ou seja: «enlouqueceu». Chegou a ser internado. Entretanto, anos volvidos sobre essa crise, mudou: tornou-se um burguês envelhecido e mais gordo, que se desfez de quem já foi, e do que então pensou e criou. No ponto em que a narrativa tem o seu início, Pirsig (mais o seu filho e um casal de amigos) reconstitui o percurso do seu outro eu, como se perseguisse um fantasma, a que chama Fedro: o professor que se passeava pelas margens da loucura [até que enlouqueceu mesmo]; o homem que se não instalava na vida e não temia a incompreensão nem o opróbrio; o que procurava o sentido de tudo com a seriedade que só entrevemos em crianças que brincam. Chris, seu filho, e os Sutherland, que o acompanham em moto, não compreendem este refazer de um caminho por poisos que já visitou. O próprio Pirsig não se lembra bem: às vezes tudo o que lhe sobra são vislumbres, fragmentos de imagens da mente de alguém que já não é ele, memórias em que não habita confortavelmente, ou que o não habitam, como se lhe proviessem de um longínquo outrem.

Não há romance: trata-se de uma narração verídica; em vez de trama, um problematizar contínuo, em ensinamentos que aqueles que o circundam não entendem, e com os quais o leitor se sente muitas vezes incomodado. Atrever-me-ia a escrever "mudado", se não soasse tão hiperbólico; mas aí está: é na medida dessa mudança, minha, que me parece estar a falar de um livro que teve um impacto específico sobre mim, como se me visasse unicamente a mim mesmo.      

Antes de se ter tornado o "romance filosófico" mais lido e comentado de sempre, Zen e a Arte de Manutenção de Motocicletas foi rejeitado por cento e tal editoras. É um facto! Não sei se realmente me anteviu como futuro leitor - sei que certamente não encontrou, em nenhum de cento e tal senhores editores, o leitor que o merecia.

domingo, 8 de março de 2015

AFONSO REIS CABRAL: O MEU IRMÃO



     Tendemos a desconfiar do Prémio Leya. Mas deixem recordar que, nos últimos anos, o dito cujo revelou escritores como João Ricardo Pedro, Nuno Camarneiro ou Afonso Reis Cabral. Poderíamos interrogar-nos, portanto, sobre este primeiro preconceito.

     Suspeitamos de Afonso Reis Cabral. Que é demasiado jovem e que o primeiro romance de um garoto há-de ter falhas; que se a crítica o tem ultimamente elogiado é por complacência, ou por ser um descendente de Eça de Queirós. São um segundo e um terceiro preconceitos.

     O romance é, objectivamente, uma estreia, mas poderia não sê-lo, de tal forma nos espanta pela originalidade, está bem escrito, a história magistralmente concebida no seu todo e no desenvolvimento, testemunhando uma profundidade emocional incomum aos vinte e poucos anos. Ou incomum, ponto.

     Quando digo que está bem escrito, ao que me refiro é a uma linguagem muito bela e muito clara simultaneamente: aquilo que outros autores, nomeadamente eu próprio, nem sempre conseguem porque o excesso de preocupação estilística pode prejudicar a legibilidade: cria uma neblina artificial, que obriga a mais do que uma leitura e afugenta o leitor. É preciso ter-se realmente um grande nível como escritor para, sem abdicar do estilo, fazer com que este se não imponha e não ofusque, não seja um ademane ou um meio de amplificação, mas apenas o modo justo de exprimir, simples (mas enganadoramente simples, porventura), distinto, evidente: é de uma limpidez que eu invejo.

     A originalidade radica logo no tema. Esta estória sobre uma paixão trágica entre dois deficientes, que nunca resvala, nem por um instante, para a pieguice ou para o moralismo, nem se deixa confundir com uma tentativa [que seria também legítima] de compreeder a condição dos "portadores de deficiência", é assombrosa na sua intensidade e na sua crueza.

O narrador tem qualquer coisa de Humbert Humbert [o de Lolita]: distanciamo-nos do seu egoísmo, criticamos a sua perversão ética e psicológica, reprovamo-lo com todo o nosso ser, mas não vemos nele o vilão, o irredimível mau; só consigo apreender-lhe o amor pelo irmão - eu sei, um amor imperdoável na sua forma e nos seus motivos, desequilibrado, egoísta, perigoso, mas triste e desesperado; talvez por se tratar do narrador, em cuja mente entramos, cujo sofrimento conhecemos por dentro.

No seu desarmante despretensiosimo, Afonso Reis Cabral, em conversa [para espanto e quase indignação dos intelectuais que o entrevistavam] dizia que «foi escrevendo», «não tinha um esquema» ou um «plano prévio» do romance: bem, seja ou não sincero, o resultado é uma obra exigentemente organizada para um fim absolutamente inesperado - e olhai lá, que aqui fala o leitor treinado de policiais: um final cru, violento, tremendo, chocante, sublime.

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

JEAN-MICHEL BARRAULT: O PERCURSO DO PRIMEIRO ROMANCE



  O Percurso do Primeiro Romance é, ele próprio, um romance - pouco extenso, dos que se lêem numa noite. Segui-o como se tivesse penetrado em um universo literário muito característico e familiar, de que fazem parte algumas referências, sobretudo francesas, cuja proximidade explicarei com o maior dos gostos e simplicidades: Candide, de Voltaire [porque se cultiva em ambos um mesmo tom de sátira, que é a ilustração de uma tese venenosa]; Como Falar dos Livros que não Lemos, de Bayard, uma vez que se trata de uma desmistificação desassossegadora da experiência literária, num caso a propósito do acto de ler, noutro caso a propósito do acto de escrever [e respectiva publicação]: os dois casos sujeitos aos seus ditames, ditadores e às suas regras, em mundos codificados, com rituais e rivalidades próprios, onde o que parece raramente coincide com o que é. Finalmente, e por razões muito evidentes, Ilusões Perdidas, de Balzac, em que se narra o fracasso de Lucien Rubempré, um jovem ansioso por se tornar conhecido como poeta. Gosto muito de fazer estas associações, peço desculpa. Não as interpretem como um exercício de exibição, mas uma tentativa de situar a obra numa determinada esfera.

 Caradet é o Rubempré deste percurso. E, para quem quer que se tenha já iniciado na experiência da publicação de um primeiro romance, a sua odisseia acende todas as luzes da memória. Passa-se em França, mas o cenário poderia bem ser Espanha, os Estados Unidos - ou, claro, Portugal, mas aí presumo que em pior.

 Barrault encena as frustrações do jovem aspirante a escritor como um jogo. Literalmente. O livro contém, aliás, um tabuleiro sobre o qual podemos simular um percurso, sob o acaso de lances de dados: as estações desta peregrinação, as casas a que se chega, ou aquelas a que se julgou chegar, os tempos e as situações típicos, os avanços e os recuos que proporcionam. O romance, portanto, é linear - mas não deixa de ser refrescantemente penetrante no modo como descreve as emoções do protagonista. Leiam-se as bruscas transições nos juízos de valor que Caradet vai formulando acerca da própria obra, que tanto lhe parece de uma originalidade superior como de uma aterradora mediocridade; e não se passe ao lado de uma narração quase sádica dos momentos do ridículo: quando oferecem a Caradet oportunidades que se lhe esvaem risivelmente (a televisão, a feira do livro, os públicos).

  Miguel Real, que me falou desta obra impagável, cometeu a inconfidência de me expor o fim. Não o farei, mas Real tem toda a razão: é nesse extraordinário fim que percebemos como, em função do que move o escritor, todas as contrariedades são irrelevantes. Um fim sem grandiloquência, mas certeiro.


quinta-feira, 30 de outubro de 2014

PAULO VARELA GOMES: HOTEL



         Lembro-me de Paulo Varela Gomes numa época em que este era uma estrela em ascensão, jovem, culturalmente polivalente, de conversa apetecível, marcada por achados de espírito incandescentes como chamas de um cigarro chupado com vivacidade. Depois, desapareceu. Publicou, recentemente, dois romances.

     À biblioteca de que sou frequentador solicitei que adquirissem um deles: Hotel. Como a biblioteca demorou séculos a consumar a referida aquisição, posso dar-me agora ao luxo de escrever sobre Hotel sem quebrar o compromisso tácito de não comentar, neste blogue, livros da moda. Ora este está já longe de o ser.

     Tal como em Cidades Invisíveis [mas no que vou dizer se esgota a analogia entre as duas obras], também Hotel é um romance acerca da construção humana como forma de dominar o espaço; e de como essa "construção" tende a revelar, em cada passo, a surpreendente ambiguidade entre a utilidade e a fantasia. As cidades desconhecidas, submersas, ocultas sob o que principiamos por ver, ou o que nas cidades é a face invisível do que nos aparece, contém sempre, em si, uma dimensão irredutível ao que seria óbvio, e prático, e porventura mais conveniente para os seus habitantes. Também o hotel de Joaquim Heliodoro nos vai sendo descrito ao longo das fases da reconstrução do que fora uma antiga moradia. O próprio arquitecto, que está ao serviço da concepção do proprietário, vai sofrendo dúvidas e receios: nem sempre compreende o sentido do plano de Heliodoro. Hesita. Discorda, até. Mas é evidente que, no fim, quando as obras no hotel [ou o hotel como obra] são concluídas, terá de se render ao dramatismo do monumento que foi recriado. Um edifício impregnado de sonho, cujos modelos são mitos e estórias, sob o contínuo halo do mistério e do romantismo.  


     Não há, durante vários capítulos - curtos, bem escritos - mais trama do que a que venho de expor. Mas a propósito das salas, ou de uma suite, ou de uma escada, o narrador faz deliciosas digressões acerca de episódios pitorescos sobre artistas, políticos ou escritores. Trabalha sobre possibilidades que o leitor - a não ser que domine exaustivamente a biografia de uma figura em causa - perguntará, porventura para sempre, se serão factuais ou ficcionais. Os textos de Baudelaire, por exemplo, que Heliodoro cita, contra a Bélgica e contra os belgas, foram mesmo escritos? Odiaria o poeta, a esse ponto, o povo que trata de cretino e muito feio?  
     É um romance particular, com interrupções, remissões e, sobretudo descrições que apuram a fantasia; é um romance de ligações a ligações - infinito, portanto, num certo sentido -, e que, por isso mesmo, me faz viajar no tempo ao reencontro do jovem Paulo Varela Gomes: na sua riqueza e dispersão de interesses, da arquitectura à arte, da história à poesia, já prenunciava este tipo de texto em que brilha o talento do caos e do desassossego.

terça-feira, 9 de setembro de 2014

DESMOND MORRIS: O MACACO NU



     Lendo, displicentemente, um livro a que, entre mais dois ou três prémios, se atribuiu o Pulitzer [foi o Pulitzer, não foi?], cujo título é O Terceiro Chimpanzé, dou por mim quase a bocejar ante a sensação de déjà-lu. Não preciso muito tempo para situar a origem desta minha ausência de surpresa. Há muitos anos, era eu um adolescente curioso e complexado, descobrira e li, mas então sim, num vórtice de fascínio e espanto, o estimulante O Macaco Nu, de Desmond Morris.

     Impressiona como um livro dos anos setenta pode soar-nos ainda hoje tão revolucionário. Já o não encontramos em livrarias, e duvido que consigamos mandá-lo vir de quaisquer catacumbas. Por mim, tive sorte. Comprei recentemente um exemplar, não especialmente bem tratado, numa feira de quinquilharia, num jardim, ao preço da uva mijona. Reli-o com gosto. A tese é aquela que o autor de O Terceiro Chimpanzé se limita a retomar, aliás com menos brilho e ousadia. E com a qual continuo a provocar, todos os anos, os meus alunos do 10º: com mais ou menos gravata, mais ou menos brincos, conduzindo um automóvel ou uma moto, dançando o Tango, escutando Bach ou Mozart, ou mesmo sendo Bach, Mozart ou Paula Rego, o homem permanece, na sua natureza mais funda, o que sempre foi: uma de várias dezenas de espécies de símios. Um macaco que se  diferencia de outros não tanto pelos seus talentos culturais [posto que diversos símios mostram um assinalável desenvolvimento cultural, embora admitamos que o ser humano alcançou um outro patamar], mas, segundo Morris, pela sua intrigante nudez. Quer dizer: por ser o único a não possuir o corpo completamente revestido de pêlos. Excluindo Tony Ramos, suponho. Eis as primeiras palavras da introdução, que não esqueci:

     «Existem actualmente cento e noventa e três espécies  de macacos e símios. Cento e noventa e duas delas têm o corpo coberto de pêlos. A única excepção é um símio pelado que a si próprio se cognominou Homo sapiens.»

     A etologia, essa assustadora ciência que devolve o homem à natureza, num estudo comparado que detecta padrões comuns do comportamento humano, de gansos ou de ratos, foi para mim, à época, uma revelação de que nunca mais me consegui inteiramente lavar. Sobretudo no que respeita à sexualidade. Um dos capítulos de O Macaco Nu constitui uma fenomenologia minuciosa do acto sexual, que não deixa de fora a sedução, a aproximação, o envolvimento dos corpos,  descrevendo as alterações físicas, a mudança da respiração ou do batimento cardíaco, projectando para o puro delírio a minha mente então virgem. Mais poderosamente do que o faria uma revista pornográfica.

     Claro que, hoje, não tenho dúvidas de que uma redução, não é verdade?, reduz... O homem é mais do que um macaco. No mínimo, mais do que um macaco entre os demais: será necessariamente um macaco especial [e, para já, tão interessante como a sua particular quase ausência de pilosidade é, sem dúvida, o inacreditável facto de o falo humano ser o de maiores proporções entre todas as espécies de símios: maior do que o do gorila, quem diria?] É evidente que a redução do ser complexo, em que o homem se tornou, à sua mera animalidade, comporta perigos; se é uma útil machadada na arrogância antropocêntrica, não deixa de nos embaraçar com uma interrogação delicada entre mãos: a de saber se a moral, por exemplo [na medida em que contraria o instinto, e se propõe "elevar" a nossa acção] não se resumiria  então, ou a um constrangimento artificial, ou a uma mera superestrutura que mascara móbiles indispensáveis para a adaptação da espécie. Seja como for, e com as devidas precauções - que se aplicam, de resto, a todas as "reduções", da psicanálise ao marxismo, sem que por isso deixem de ser teorias riquíssimas e muito instrutivas - O Macaco Nu é uma obra aliciante. O seu carácter desmistificador é de uma lucidez arrepiante. E mantém-se saudavelmente irreverente.

quarta-feira, 27 de agosto de 2014

JORGE AMADO: TERESA BATISTA CANSADA DE GUERRA


Teresa Batista Cansada de Guerra é uma leitura da minha adolescência. Ou seja: algo como uma relação sexual prematura: não tinha idade para aquilo...
Há uns meses, outra Teresa, que nunca mais me veio aqui falar e de cujos comentários sinto saudades, a mesma que me apresentou vários autores - d'Ormesson bastaria - e me devolveu Brasillach, chamava precisamente a atenção para uma secreta afinidade entre passagens de dois escritores tão diversos, temporal e histórica, geográfica e culturalmente. Eu elogiava a beleza de 15 páginas que Brasillach demorava a narrar uma noite de amor, e a autora de A Gota de Ran Tan Plan recordou-se, a esse propósito, do encontro entre Teresa Batista e Daniel.

Há diferenças que não posso deixar de assinalar. Brasillach escolhe o pudor como estratégia narrativa e descritiva. Não quer contaminar o que deve conservar-se secreto. Amado envereda pela exposição, metafórica, é certo, mas uma exposição ainda assim: fala do pássaro de Daniel, que voa nas mãos de Teresa, e da espada daquele, ou da baínha e da flor desta; trata-se de encenar um espectáculo, e já não de nos conduzir, sob a chama de um fósforo, sem quebrar a essência da obscuridade. Nesta comparação - e o que digo liga-se a uma questão pessoal, de gosto - Jorge Amado está longe do poder de Brasillach, baseado inteiramente na sugestão.


Porque Jorge Amado é um dos pais de Mia Couto, e isso enerva-me um pouco: o escritor cuja linguagem funciona como uma etiqueta cultural, se não étnica: a brasilidade, como o outro reivindicará a moçambicanidade, ou seja o que for. Tem graça no momento antes de se esgotar numa fórmula. Torna-se imediatamente datado: relido, 30 anos mais tarde, é insuportável. Aqueles diálogos com o leitor, a quem vai tratando de «meu chapa», ou «irmãozinho», ou «amigo» [«o amigo é um fode-mansinho»], ajoujados de idiotismos, são pedaços de prosa cuja leitura devém penosa.

Arrumada esta falta de fé num certo vício estilístico do autor [que, aliás, como veremos adiante, não inquina completamente a sua escrita, capaz de alcançar elevados cumes] , assentemos no que realmente importa. Jorge Amado é magnificente na construção das estórias e na compreensão das personagens. A trama de qualquer um dos seus romances parte de uma ideia central, sumarenta, que se vai repartindo em diversos fios, sem se perder a visão de conjunto. Teresa Batista Cansada de Guerra vive de uma estrutura dinâmica, assumidamente folhetinesca, porque cada capítulo se detém numa certa fase da sua biografia, não necessariamente por ordem cronológica, mas cada um desses momentos é riquíssimo de acontecimentos e de figuras. Melhor do que esse aspecto, ou tão bom como ele, só a compreensão das suas personagens, o mecanismo de uma certa empatia, que tem muito que se lhe diga. Parágrafo.

Não se é neutro. Os coronéis, os capitães, muitos juízes ou polícias, são figuras abomináveis. Mas as prostitutas, por exemplo, são mulheres de uma insuspeitada sensibilidade, generosas e fortes. No episódio sobre a epidemia que grassa na povoação, quando o doutorzinho e a enfermeira-chefe se recusam a expor-se, e fogem, são as putas, lideradas por Teresa Batista, que partem a vacinar a população, sem o menor receio; e mesmo personagens infames, como a tia de Teresa, que a criou [e a vendeu, ainda menina, ao capitão Justiniano] e seu marido, não são simplesmente infames: são trágicas. Nem digo tragicómicas: são trágicas. Jorge Amado consegue infiltrar-se no interior da sua consciência, e nós compreendemos que a sua indignidade moral convive com duríssimas tristezas, frustrações e a mais pura infelicidade.

O trecho em que seguimos o pensamento de Rosaldo, tio de Teresa, bêbedo, preguiçoso e cobarde, é impressionante. É um momento de génio: o capitão Justiniano vem buscar a menina; a tia recolhe o maço de notas e um anel de pechisbeque. Rosaldo está sentado, incapaz de tomar uma atitude. Quem nos conta o que sucede é o narrador; mas, no seu discurso, intercalam-se as palavras pensadas pelo tio. E neste complexo, apercebemo-nos de diversos sentimentos, ao mesmo tempo: que Rosaldo esperava o momento certo para abusar da menina; que a via gulosamente crescer; que odeia o capitão; que o teme; mas, ainda, que uma vaga ressonância moral [hipócrita, é claro] o faz interpelar, na sua mente, a mulher: Como é que tu é capaz de vender a menina? a filha de tua própria irmã? Deus não vai te perdoar nunca. Mas todas estas dimensões interiores aliadas à sua impotência, ao seu pavor, que o colam ao sofá, sem um gesto. É um excerto assombroso, em termos de escrita. É o «outro lado», mais interessante na minha óptica, de Amado. Quando se despe de fórmulas. Quando não pactua com uma certa facilidade popular. Quando, meu chapa, encontra em si uma energia em que se cruzam a sabedoria da simplicidade e a autêntica originalidade.   

segunda-feira, 25 de agosto de 2014

JOHN UPDIKE: CORRE COELHO




Falar deste romance de Updike é, antes de mais, uma oportunidade para trazer à baila dois livros de uma lista da qual, no início das férias, prometia tratar.
Um deles é O Homem que Gostava de Cães, do recém-descoberto Leonardo Padura.
A dada página, o narrador confessa:

«Eu, ao contrário da primeira vez, mantive-me sentado, com o romance que estava a ler nas mãos - tinha começado Corre, Coelho, aquele livro que Updike nunca superou

Parece promissor, apesar de John Updike não estar, aqui, em competição senão consigo próprio.

O outro seria A Herança Perdida, do estimulante James Wood, e aí escorrego em provocações tão maldosas como esta:


«John Updike é seguramente um dos menos trágicos dos grandes escritores, e o mais complacente de todos os escritores teológicos

Mal conseguira recomeçar a respirar e já, pouco adiante, embatia neste outro arrepiante comentário:

«No seu pior, a sua escrita é de um lirismo inofensivo e inchado, de uma liberalidade aristocrática, como se a linguagem fosse uma despesa sem importância para um homem muito rico e Updike acrescentasse a cada frase uma generosa gorjeta

Compreendo Wood. A sua sentença assassina, para além de muitíssimo bem achada, tem razão de ser. As descrições a que Updike nos sujeita estão sempre no limiar do rococó. A tradução que leio é de Fiama Hasse Pais Brandão, que consigo imaginar com sucessivos estremecimentos de volúpia perante períodos que me abstenho de transcrever.

Mas regressemos à acusação fatal: a ausência de tragicidade; sim. Posso compreender Wood. O problema da visão religiosa de Updike é a de que lhe falta o demónio. O inferno. Sigam este diálogo:

« "Ora digam lá, ele fê-los acreditar no inferno?" Harry ri. A imitação de Eccles é perfeita. [...]
«E fez? Você acredita?
«Fez, acho que sim. O inferno como Jesus o descreveu: afastamento de Deus.
«Bem, se é isso, pode-se dizer que estamos todos já mais ou menos no inferno

Teologicamente, esta perspectiva é moderna e interessante. Não me queixo: pessoalmente, o diabo não me faz a menor falta. A eterna ausência de Deus parece-me punição suficiente; mas Harry, o Coelho, é lúcido: sem inferno à maneira antiga, sem mal que não seja «psicanalisável» e «compreensível», não é possível esperar-se uma tragédia com alguma espessura.

A vida de Coelho está degradada. Olha em torno de si, e tudo são restos. Sem verdadeiramente traçar um plano ou decidir um rumo, principia a correr. [Metaforicamente: vai no seu carro; embora, mais tarde, assistamos a momentos de efectiva corrida a pé...] É de Deus que foge? Não creio - é mesmo de Janice, é mesmo do filho, por quem, no entanto, sente amor, de seus pais e de seus sogros, é do vazio que marca tudo o que vive e em que toca. Claro que a questão decisiva é a da incapacidade da escolha; e claro que há tragédia bastante no afogamento de uma criança recém-nascida. Ainda assim. Pergunto-me que há a acrescentar a este romance, que permitiu a Updike querer continuá-lo, numa extensa obra dedicada ao mesmo Coelho.

Uma coisa sabemos, a fazer fé em Padura: na sua corrida, Updike não conseguiu superar-se a si próprio.

quarta-feira, 20 de agosto de 2014

GRAHAM GREENE: OS COMEDIANTES



     Há que principiar pelo que me captou em primeiro lugar, e mais fortemente: a relação de Mr. Brown com uma mulher casada, a esposa de um embaixador sul-americano no Haiti; por experiência, própria ou imprópria [com o segundo termo da disjunção, pretendo simplesmente significar: experiência não pessoal, mas adquirida por interposta pessoa - e deixemos de parte os pormenores], concebo que a insegurança seja parte significativa de uma relação clandestina. Pormenores minúsculos ruminam obsessivamente no espírito de quem não está com a amante senão raramente, e em segredo.

     «- Como está o Luís?
     «- Na mesma - respondeu ela. - Sempre na mesma.
     «Contudo, eu pensava que ela já o amara. Este é um dos espinhos do amor ilícito: as mais voluptuosas provas de amor da nossa amante são o testemunho de que o amor não é durável

     É uma insegurança que raia a paranóia: se não é o "legítimo" esposo dela que provoca ciúmes, é - como neste romance - o seu filho, possessivo, mimado, controlador. De forma que se cria um quadro em que todas as palavras e todos os gestos de Martha parecem ter um sentido oculto, onde é sempre possível ler «já não gosto de ti» ou: «não o suficiente para correr riscos». Ou seja o que for. Nesta descrição, Greene revela-se de uma sensibilidade e de uma acutilância magistrais: reconheço aqueles diálogos, aquelas suspeitas, os medos, os amuos, os remorsos. Ouvi falar.

     "Os Comediantes" é um título irónico e, nessa medida, enganador. Poderia pensar-se que estamos em face de um grupo de "indiferentes" aos acontecimentos do Haiti de "Papa Doc" e seus Tonton Macoute. Não invento; leio na contracapa: «[Na acção] intervêm algumas personagens ambíguas que mais parecem, de facto, "comediantes", tão indiferentes se mostram à tragédia que os cerca». É falso: Mr. Brown, já mencionado, Mr. e Mrs. Smith, até mesmo o impagável Jones, que se auto-intitula Major Jones, um puríssimo Falstaff, personagens cujos caminhos convergem, casualmente, para o país de um tirano, estão muito longe da indiferença. São cómicos precisamente porque os seus comportamentos não se ajustam à realidade. São cómicos porque guiar-se por um ideal devém facilmente risível num mundo denso de realidade. A comédia não resulta frequentemente do desajustamento entre o princípio do prazer e o princípio do real?

     Não é um dos mais famosos romances de Greene. Aproveito, portanto, para contar por que - e de onde - o trouxe. Mas acreditariam se vos dissesse que, em certos dias da semana, há um jovem que, no átrio do Centro Comercial Palmeiras, liquida livros ao preço da chuva? Edições «Livros do Brasil» [prestem atenção!] a 2,50: dois euros e cinquenta cêntimos!?

     Os Comediantes constituiu uma surpresa e tanto! O registo cómico da primeira parte, quando Brown, os Smiths, Jones, e um par de maravilhosos secundários se conhecem, num cargueiro holandês, a caminho do Haiti, vive tanto da sua ingenuidade [uma ingenuidade ridícula, porém com surpreendentes vislumbres de grandeza] como de uma espécie de surrealismo burlesco; mas é também o momento em que se antevê e adensa o enigma dos seus passados, dos percursos que os conduzem ao seu destino. Se a segunda parte, já em pleno terror haitiano, permite o cruzamento com outras personagens, a clarificação de uma parte dos mistérios que pesam sobre aqueles indivíduos e o desenvolvimento de uma história central, sobre uma paixão ilícita, é a terceira parte que nos devolve o Major Jones no seu melhor. Que faz, deste, uma personagem inesquecível e de primeiro plano. O aventureiro cómico, o burlão inocente, o materialista sonhador. Assistimos, perplexos, rendidos, à confissão sincera do grande mentiroso: eu diria que poucas vezes um romance tragicómico atinge, a este ponto, todo o esplendor da sua razão de ser.




sexta-feira, 15 de agosto de 2014

EDITH WHARTON: SONO CREPUSCULAR



Fui-lhe apresentado da forma que narrarei em duas palavras: há semanas, em seu sumarento editorial, no caderno do Expresso, que dirige, Pedro Mexia referiu uma recém-publicada tradução portuguesa de contos de Edith Wharton. Bastou isto. Procurei, na minha biblioteca predilecta, contos da autora; em vez disso, acabei por me decidir por um seu romance.

Antes de mais, um comentário sobre o tradutor: não só a tradução propriamente dita me soa muito bem, e me parece excelente - com a justificação criteriosa de algumas opções -, como o enquadramento histórico e cultural do romance é exaustivo, muito culto, raramente no limiar do excesso picuinha e do exibicionismo, os quais, mesmo quando sucedem, não deixam de ser interessantes. Pode parecer desnecessário, mas nenhum leitor se deve sentir coagido a ler o que dispensa, e a verdade é que esta estória ganha cambiantes e contornos quando os pormenores fazem sentido à luz dos loucos anos entre as Grandes Guerras, que o tradutor reconstitui em notas completíssimas. De momento não tenho comigo o nome deste senhor, mas brevemente estarei em condições de reparar a injustiça.

Evitemos os adjectivos grandiloquentes ou a apologia fácil de E. W. Mas agrada-me supinamente a sua abordagem dos sentimentos. Recorda-nos George Eliot. Middlemarch. Não há punhadas nas portas da sua escrita nem solas ecoando pesadamente sobre o soalho da ficção que ela constrói; tudo é, pelo contrário, o movimento de subtis delineamentos, ambíguas aproximações. O traço grosso não existe: apenas pinceladas impressionistas. A analogia merece que nos detenhamos: numa pintura impressionista concluída, percepcionamos figuras; mas imaginemos agora que seguimos a produção do quadro, as linhas que não se agarram, as cintilações aparecendo diante dos nossos olhos - como adivinhar a "figura" que nascerá, a paisagem, as nuvens, o mar, um barco?
Sono Crespuscular também  não progride segundo uma linha recta. Sentimos pulsações. Breves emergências. Julgamos ver os pontos em que se vai desenhando uma paixão perversa, mas será que o é? Será mesmo uma paixão? [Haveria outras explicações.] E em que medida perversa?


Por outro lado, prezo, como em todos os romances da minha vida, a "orquestração". Uma família complexa, de relações que se vão sobrepondo em camadas, um primeiro marido, com quem Pauline ainda se dá, ou que ajuda, moral e economicamente, um segundo marido que se preocupa com o enteado e o protege [a não ser que se não trate exactamente de cuidado, mas de uma recôndita outra intenção], ou dois meios irmãos que se amam, a paixão, o tédio, o cinema, a nova música, as novas ideias, as novas curas, são inúmeros personagens e elementos, que requerem uma visão de conjunto, e mediações bruscas, velozes, primorosas neste romance.

Por fim, rendo-me a esta fenomenologia do auto-engano. Recordemos de novo George Eliot que, nesse aspecto, nos deslumbra. Mas Wharton também. Será um segredo de escritoras? E só de algumas? Não. Shakespeare e Dostoievski descrevem brilhantemente as operações de uma consciência que refaz o que está diante de si, da forma mais conveniente, mais desejável para si própria. Não uma consciência cega, pois que, num certo ponto de si, talvez saiba a verdade, mas que, obstinadamente, a si mesma a mascara: sob uma «análise», uma racionalização, uma fé, um ideal. Pauline revela-se, a esta luz, uma personagem admiravelmente patética. E naturalmente cómica. E triste, embora nem dessa tristeza se aperceba.

Edith Wharton, sim. Obrigado ao recomendador.

sábado, 9 de agosto de 2014

CHATEAUBRIAND: MÉMOIRES D'OUTRE-TOMBE


Não leio a versão integral, que se basearia em 3 500 páginas manuscritas, mas a antologia a que pude aceder. Esta, curiosamente, tem o suplementar interesse de haver sido compilada, anotada e prefaciada por Jean-Claude Berchet, que é um perseguidor meticuloso de tudo quanto diga respeito a Chateaubriand: os factos, os textos, os erros.

Os erros: há, em Chateaubriand, algo que prenuncia o talentoso desleixo de um Borges. [São os dois displicentes mais geniais que conheço.] Uma ausência de rigor, com um charme muito próprio, como se o espírito fosse sempre mais importante do que a letra de uma citação, e como se o génio legitimasse a distorção de qualquer referência de forma a conduzi-la precipitadamente a estar de acordo com o nosso pensamento; em suma: Chateaubriand é tão pouco preciso nas datas, nomes, dados factuais, até no número de irmãos, como na transcrição da frase em latim, ou em inglês. Está acima deles. O sumo do que nos quer contar é o que verdadeiramente importa. Torna-se fascinante acompanharmos as emendas de Berchet, não como se admoestasse o autor de sua eleição, mas para refazer honestamente a verdade, logo que este desliza. Um exemplo: Nihil Longe est a Deo, retém Chateaubriand de Santo Agostinho; e, imediatamente, Berchet: «Mas Chateaubriand cita inexactamente o texto original: nihil longe est Deo, quer dizer, nada está longe para Deus [...]»

As memórias são maravilhosas, a vários títulos. Pelo próprio conceito, antes de mais: memórias que nos ecoam do além, no sentido em que, em vida do autor, eram já registadas para publicação após a sua morte. É a ideia de Memórias Póstumas, como as que Machado de Assis virá a atribuir ao seu Brás Cubas. Afirma Chateaubriand: «Aqueles que sejam perturbados por estas pinturas e tentados a imitar estas loucuras, aqueles que se liguem à minha memória pelas minhas quimeras, devem lembrar-se que não escutam senão a voz de um morto. Leitor, que nunca conhecerei, nada ficou: não resta de mim mais do que o que eu sou entre as mãos do Deus Vivo, que me julgou»; em segundo lugar, a beleza, tão francesa [Pascal, Montaigne], da sua escrita, que as palavras que acabei de traduzir perfeitamente testemunham: é de uma vivacidade poética, de uma profundidade «sólida e leve», que não nos fatigamos de sublinhar; em terceiro lugar, a graciosidade dos episódios de infância ou juventude, a inteligência na análise dos sentimentos, das relações, das expectativas, dos tremendos desânimos, das personalidades. Certos relatos são clarões da infância, ligados entre si por uma interpretação tranquilizadora. Toca-me particularmente esta: «Certo marinheiro, ao sair dessas cerimónias, embarcava fortificado contra a noite, enquanto outro regressava ao porto e se dirigia ao edifício iluminado da igreja: assim a religião e os perigos estavam continuamente em presença, e as suas imagens apresentavam-se inseparavelmente ao meu pensamento.» Por fim, a penetração no espírito de uma época.  A tomada da Bastilha. A paixão das massas. Luís XVI. A Assembleia Constituinte. Mirabeau. Robespierre.

Imagino que me retrucam: e para a História, o que valem estas memórias de um génio que não prima pela exactidão? Obrigado por perguntarem. Têm um valor extraordinário, porque se trata de uma avaliação psicológica de caracteres, feita com uma grande profundidade. O retrato de Luís XVI é, desse ponto de vista, soberbo. Confirmemo-lo na subtileza desta síntese, a que certamente Stefan Zweig foi beber, quando redigiu o seu Maria Antonieta: «Luís XVI não era falso; era fraco: a fraqueza não é a falsidade, mas toma-lhe o lugar e preenche-lhe as funções

Os livros são, frequentemente, diálogos com o além-túmulo; alguns terão sido escritos a pensar na posteridade; mas não há muitos que fossem, de raiz, criados já com esta liberdade e esta leveza em relação ao presente do autor. Há poucos que se façam sob o signo desta espécie de pacto com a verdade.

terça-feira, 5 de agosto de 2014

ROBERT HARRIS: PÁTRIA


O livro, que foi traduzido para português nos anos 90, está esgotado.
Dei-me a alguns trabalhos para o encontrar e, por fim, requisitei-o na habitual biblioteca.

Os pressupostos são promissores, mas nada valem de per se. O nazismo teria vencido a Guerra e, nos anos sessenta, na Berlim de uma Alemanha expandida, que se prepara para comemorar os 70 anos do seu Führer, testemunhamos a euforia generalizada, a atmosfera festiva, mas, sob esta, aos poucos, penetrando na vida quotidiana de cidadãos comuns, detecta-se o desgaste e o desgosto.
Não é nada de muito óbvio. Hitler é adorado pelo seu povo; não se fala dos judeus - e poucos se apercebem da sua invisibilidade, o seu paulatino desaparecimento. As juventudes nazis são fervorosas. A propaganda cumpre zelosamente a sua missão. Que desgaste seria, pois, esse? Que desgosto se entranha, como resistência passiva, no mundo ariano?

Um agente da polícia é chamado a investigar um cadáver surgido num rio. Este detective, cujo nome não recordo nem vou agora procurar, é um homem na verdadeira acepção da palavra: por "homem" entendo um ser humano autêntico, com contas por pagar e uma vida contaminada pela infelicidade. Não é um nazi nem um anti-nazi. Nada possui de um herói ideológico. Não sustenta uma teoria sobre o mundo triunfante e triunfalista em que está submerso - nem contra nem a favor. Divorciado de uma mulher que o considera, porém, teórica e praticamente negligente, sem fibra de militante [ela, pelo contrário, fora apreciada e condecorada como exemplo de mulher alemã]; pai de um filho que, porventura, secretamente, o ama ainda, mas ao mesmo tempo o despreza pelo seu relaxamento ideológico, e o há-de denunciar ao partido, este homem descobrirá, na sua investigação, estranhas e perigosas implicações políticas.


Mesmo um indiferente - caso do protagonista -, quando toma consciência de factos e sentimentos recalcados, que não poderão já evitar-se uma vez postos a nu, tem de assumir posição: só conseguiria manter a preguiça da inocência, ou da indiferença, se lhe faltasse qualquer centelha de humanidade e de espírito. Pelo contrário, se as perguntas mais terríveis nos acicatam; se nos questionamos; se principiamos a reflectir, movidos pela paixão inesperada por uma inimiga, ou pela perfídia e traição dos "nossos", como desencadeadores da epifania; se a nossa índole é boa [sendo uma pessoa boa aquela que se preocupa com os outros], então não há como continuarmos aceitando.

Pátria é, mais profundamente que a obra de um John Le Carré por exemplo, um exercício policial na paisagem de uma interrogação  moral e política: torna-se aliás, e mais do que muitos ensaios dedicados ao tema, uma reflexão sobre os laços e as clivagens entre a moral e a política.

quinta-feira, 17 de julho de 2014

RAYMOND CHANDLER: O IMENSO ADEUS





Recorrentemente, a injustiça de certas não-atribuições de prémios Nobel da literatura a quem mais os merecia é tema de indignações e maldizer. Mas à questão de preferências pessoais ou do "espírito" dos critérios do júri, terá de se acrescentar uma outra questão, que é a de um preconceito ostensivo. Refiro-me aos sub-géneros, ou géneros menores, e depreciados. Como o policial. Já nem falo da ficção científica.

     Raymond Chandler, muito mais do que uma Agatha Christie por exemplo [e nada de equívocos: sou um fanático de AC] fez do policial um género sobre relações humanas, solidão e ética. É literatura maior. Fez de Marlowe uma personagem fulcral do romantismo: um homem comparável a Corto Maltese, que reúne, a uma absoluta integridade, uma
incomensurável força psicológica: a de nunca se deixar intimidar. Os diversos detentores de pequenos poderes, que se comprazem num contínuo exercício de bullying [governadores, ou comissários ou meros polícias, representando o mais execrável do sistema] podem perseguir, prender ou sovar, mas não quebrar.

  Herói e anti-herói, duro e compassivo, de uma rectidão que se move sempre nas entrelinhas da lei, forte e frágil, romântico sem lágrimas nem arroubos, sobrevivente claro e limpo de um habitat corrupto e podre, sem laços duradouros, autónomo nos seus recursos, na sua inteligência e na sua ironia, Marlowe torna-se admirável; ouvimos mencionar o seu nome e pensamos em Humphrey Bogart. Mas vai-se lendo a obra no seu conjunto [lê-se, digamos, O Imenso Adeus] e, curiosamente, não é Bogart quem responde à chamada, é um homem mais interessante, menos magrito e menos pequeno: é, sobretudo, uma personagem menos distante e cínica do que aquela que Bogart assume, com inexplicáveis momentos em que se deixa seduzir por femmes fatales. E, de uma ou de outra forma, todas as mulheres de Chandler são femmes fatales.


Considero os diálogos, em O Imenso Adeus, absolutamente extraordinários: concisos, credíveis. Mesmo quando uma personagem tem muito que explicar e, por isso, fala demoradamente (sem deixar de ser conciso, acreditem), fá-lo de um modo convincente. Nunca servem para encher chouriços: são momentos cruciais de sistematização ou revelação.


É um livro que não devemos ler com sono; fiz a experiência e dei-me mal. Perdemo-nos em mastigações, mais para o fim, a não ser que nos mantenhamos vigilantes. Também poderíamos, é claro, desejar que nunca houvesse coincidências: que dois "casos" paralelos do detective bruscamente se enrolem um no outro, com insuspeitadas ligações entre pessoas de esferas diferentes, soa-me sempre a desprezo pelo leitor. É uma facilitação. Os grandes mestres não a cometeriam, mas a verdade é que Chandler a pratica alegremente e nem por um instante deixa de ser o mestre dos mestres.

segunda-feira, 7 de julho de 2014

Depois da Tempestade a Bonança



Revoluções de ordem vária na minha vida têm-me afastado da internet em geral e deste blogue em particular.

Sinto saudades. E tenho lido, tenho lido sim, pelo que regressarei um destes dias, para conversar sobre um dos amigos que me têm preenchido:

Mémoires d'Outre-tombe, uma antologia das imperdíveis memórias de Chateaubriand.

Pátria, do Robert Harris, uma arrepiante obra já dos anos 90, alicerçada na premissa de que o resultado da Segunda Grande Guerra foi outro.

O Imenso Adeus, do Chandler.

Terna é a Noite, do Fitzgerald (interessante, apesar de uma escrita inesperadamente artificial - ou será da tradução?)

O Homem que Gostava de Cães, sobre o assassinato de Trotski, da autoria de Padura, uma recente descoberta pela mão da minha amiga Paula. [O Padura, não especificamente este romance]

Disperso-me também por alguns ensaios, como os do brilhante James Wood, não o actor de nome quase idêntico, mas o crítico pop-erudito de literatura.

E procuro ainda uma certa ficção do Philip K. Dick, que não consigo encontrar.

Portanto, é um até breve, não um imenso adeus.

quarta-feira, 28 de maio de 2014

DANIEL PENNAC: COMO UM ROMANCE



Posso ensinar a ler; e, ao longo dos anos, tentei ajudar a que os leitores que vou formando, meus filhos ou meus alunos, adquirissem - peço perdão pela palavra feia - «competências» de leitura; como se manobra um texto, como se reconhece a estrutura, sintáctica, ou semanticamente. Nada disto tem que ver com o gosto pela leitura.

Todos nós sabemos em que medida um trabalho burocrático sobre um texto nos afugenta dele. A abordagem gramatical de Os Lusíadas afastou-me por muitos anos de Camões; Cesário Verde, estudado sem fogo e sem curiosidade, parecia-me um repórter de trivialidades em rima, não um autêntico poeta.

O que não significa, por outro lado, que a escola não deva e não consiga ser uma educadora de leitores. Os Maias foi descoberto nas aulas de português, e pressentido por mim, desde o primeiro momento do corpo a corpo, como um objecto pouco banal de prazer, um teatro de humor, empatia, dor e melancolia. Entre colegas, fora das aulas, relembrávamos os episódios que nos tinham divertido ou as personagens que preferíamos.

Não é tanto este reconhecimento de que [salvaguardadas as benfazejas excepções] é fácil, e até vulgar, a escola matar o prazer da leitura, o que me parece original no livro de Pennac. O melhor é a visão desregrada que oferece, literalmente, questionando com ousadia as teorias de quantos se consideram leitores de eleição. O melhor é a destruição minuciosa de uma série de afirmações que nós próprios tenderíamos a considerar evidentes, a tal ponto se disseminaram entre as pessoas «cultas»: os perigos da televisão, ai ai, a forma como desvia potenciais leitores, propondo-lhes narrativas visuais, que recebemos passivamente - não é verdade! -, ou a clássica distinção entre «maus livros» (que deveríamos evitar que caíssem na alçada dos adolescentes) e «bons livros» (que há que impor-lhes), para mencionar dois exemplos.


O prazer da leitura não é de origem complexa ou enigmática. Começa sempre por que se oiça ler em voz alta. Ponto. Os
grandes educadores do gosto são os professores que, numa primeira fase, prescindem da preocupação com os programas ou enquadramentos. São os que despejam em cima da secretária, de uma sacola, entre chaves e canetas, dois ou três livros, abrem um e iniciam a partilha de uma viagem. Os seus predecessores são os pais que lêem ou contam histórias aos filhos.

Nas regras - célebres - que Pennac propõe para a relação do leitor com os livros, procura sempre aliviar a culpabilidade, desmantelar uma certa ideia de erro ou de pecado por se não estar sendo um «leitor correcto». A tudo o que se diz, habitualmente, que se não deve fazer [ler maus livros, não ler um livro até ao fim, etc.], Pennac retorque com um simples «E por que não?» Uma relação de prazer não pode depender de uma estratégia adequada, ou de uma moral constrangedora.

Identifico-me com a veia anarquizante que pulsa neste livro. A mensagem é simples. Os bons leitores são os que lêem o que bem entendem, quando, onde e como entendam bem.

sexta-feira, 16 de maio de 2014

MINETTE WALTERS: A MÁSCARA DE DESONRA



Reparo uma injustiça em relação a Minette Walters. Nunca tendo aqui escrito sobre ela, é contudo uma das responsáveis pelo nascimento deste blogue. Lembro-me de que principiou tudo com uma entrevista que ouvi, na rádio, a uma senhora - quem seria? - que falava de dois autores; pelos vistos, falou com paixão. Não sosseguei enquanto não os descobri. Acabei por escrever sobre um deles. O outro, injustamente, suponho que não haja sequer sido mencionado. Era Mrs. Walters.

Segundo parágrafo introdutório: a fábrica de alternativas, autêntico encontro de boas-vontades, reúne, aos sábados, em um parque de Algés. Arrastado para o desconhecido, deparo, junto a uma árvore, com uma biblioteca peculiar: livros espalhados pelo chão, sob um cartaz que informa: «Leve um livro, e em troca deixe outro. Se não tem para deixar, não faz mal, traga para a semana.» Irresistível convite. Olhei, folheei, ponderei. E vim de Minette Walters debaixo do braço.

A Máscara de Desonra é um romance sobre personalidades. Não por acaso uma das personagens é um pintor que se dedica a captar a personalidade dos que retrata: na cor sobretudo, mais do que na fidelidade ao real percepcionado, Jack penetra almas, abarca-as nas suas emoções mais íntimas, na sua essência confidencial. Psicologicamente, a obra desafia-nos. Minette Walters usa sabiamente os preconceitos, as interpretações que as personagens fazem acerca da maneira de ser das outras; e como o olhar de cada um sobre o seu próximo é sempre tendencioso - até os retratos pintados por Jack podem ser lidos erroneamente - o leitor equivoca-se tanto como aqueles sobre quem lê. Ora se é relativamente simples começarmos a antipatizar com algumas  [não digo: a suspeitar delas; isso poderá suceder ou não. Digo simplesmente: antipatizar; irritar-se com. Na verdade, a própria vítima é, em muitos aspectos, uma mulher detestável], se é, portanto, muito simples não gostarmos de alguém, e se nos leva muitas páginas de tempo aceitarmos que nos enganámos porque tal pessoa não seria bem o que nos parecia, imaginem a dor com que, tendo-a redescoberto a uma nova luz, principiando talvez a amá-la, seguros dos nossos sentimentos, somos repentinamente confrontados com a suspeita.

Sendo que também aí a perícia de Minette Walters se revela vertiginosa. Porque o que julgamos ver pode não ser o que estamos vendo: os gestos enganam, e observado de longe, ou pelos olhos de outrem, querer salvar alguém pode confundir-se com estar a matá-lo. [O exemplo que dei é deliberadamente distorcido. Não sou um spoiler.] Como no melhor de Agatha Christie. Precisamente.

Este é o meu convite para descobrirem Minette Walters. E tem de ser assim: sem fotografias da autora, ou da capa do livro. Sem desenhos nem demasiada explicação. Num policial maduro, há que descobrir.
      

quarta-feira, 16 de abril de 2014

CHIMAMANDA NGOZI ADICHIE: AMERICANAH



     Meu primo, cujo cognome bem poderia ser "O Mencionado", tal a frequência com que este blogue colecciona as suas opiniões em matéria de literatura - como se eu fosse o seu Boswell -, viveu vários anos nos EUA; casou-se, aliás, com Andy, mais do que uma norte-americana, uma pura nova-iorquina. Eis porque gostaria que lessem, ambos, o prodigioso - em muitos aspectos - romance de Chimamanda Adichie. Por outro lado, temo em particular a reacção de Andy: seriam, a obra em si e a minha recomendação, tomadas por uma provocação?

E, contudo, o seu poder suga-nos. Nem sempre sem crítica, ou sem indignação, mas suga-nos,
arrasta-nos para um lugar que está longe de ser neutro. Não se consegue ser-se indiferente a esta visão da América e dos americanos [tal como os percepcionamos pulverizados em ícones, em categorias e atitudes
 de vida, ou em angústias e equívocos, em tiques da própria língua, como a propensão para tudo achar "exciting"; ou como os percepcionamos na má consciência dos ricos, ou na sua inocência e na boa vontade perante os pobres, o misto de condescendência e culpabilidade imersos num complexo banho multiculturalista [ou interculturalista?], desenvolvida ao longo de 700 e tal páginas segundo o olhar de Ifemelu, a protagonista, uma nigeriana que se arrancou à Nigéria e ao seu namorado Obinze, buscando nos Estados Unidos o Eldorado.

Acredito que, para a minha prima Andy, esta visão contenha um elemento irritante. Cito uma passagem que acabo de ler, e a magoaria decerto:

«Reconhecia em Kelsey o nacionalismo dos liberais americanos, que criticavam copiosamente a América mas não gostavam que os outros o fizessem; esperavam que os outros se calassem e se mostrassem agradecidos, e recordavam-lhes sempre quão melhor era a América do que a terra deles, fosse qual fosse

Há, nesta obra, uma arrogância de "classe": pertencer a uma minoria étnica equivaleria, de acordo com Ifemelu, a integrar uma vaga classe, não necessariamente económica, mas produzida pela percepção que os WASP têm dos não-brancos e dos brancos pobres. Embora não se reduza tudo a isso, e mais adiante Ifemelu reconheça que se trata de uma classe desunida pela sua própria natureza, e sem possibilidades de vir a unir-se. É, portanto, um romance de tese: aliás, essa "agenda" fica denunciada por um estratagema perverso: a protagonista escreve um blogue sobre «estilos de vida», denominado: Sobre Raça ou Várias Observações Sobre Negros Americanos (Anteriormente Chamados Pretos) por uma Negra Não Americana. A citação de "posts" do seu blogue torna-se, obviamente, um modo fácil de fazer proselitismo.

Diga-se, pois, que Americanah é interessante pela pulsão de descrever, pelas situações e diálogos, muito mais do que pela estória. A narrativa, propriamente, é paupérrima, e para a conhecer bastar-nos-ia a leitura da sinopse. Não que o seu desenvolvimento não esteja bem urdido, mas é simplista e, apesar dos adiamentos com que subverte as expectativas do leitor, recorre excessivamente a epifanias: o momento em que se tornaram verdadeiramente amigas; o dia em que «decidiu deixar de fingir que tinha sotaque americano»; o instante em que descobriu que um desconhecido, com quem entabula conversa no comboio, é um potencial homem a reencontrar. Porém, a atenção a uma ingenuidade bem intencionada, como um padrão americano, parece certeira e cómica. Exemplifico imediatamente; perdoar-me-ão a extensa citação, mas hão-de concordar que merece a pena:

«Na caixa, a empregada loura perguntou: - Alguém as atendeu?
- Sim - disse Ginika.
- A Chelsey ou a Jennifer?
- Desculpe, não me lembro do nome dela. - Ginika olhou à sua volta para apontar a empregada que a atendera, mas ambas as jovens tinham desaparecido para os gabinetes de prova nas traseiras.
- Foi a que tem cabelo comprido? - perguntou a funcionária da caixa.
- Bem, ambas têm cabelo comprido.
- A de cabelo escuro?
Ambas tinham cabelo escuro.
Ginika sorriu e olhou para a funcionária da caixa e ela sorriu e olhou para o ecrã do computador e passaram dois segundos arrastados antes de ela dizer num tom bem-disposto: - Não tem mal, eu descubro mais tarde e certifico-me de que ela recebe a comissão.
Ao saírem da loja, Ifemelu disse: - Estava à espera de que ela dissesse: "Era a que tinha dois olhos ou a que tinha duas pernas?" Por que é que ela não perguntou simplesmente: "Era a rapariga negra ou a branca?"»
Ginika riu-se: - Porque isto é a América. Tem de se fazer de conta que não se repara em certas coisas

Talvez todos os não-americanos que vivem na América gostassem de ser americanos. «[...] compreender tudo sobre a América, [...] usar uma nova pele adaptada: apoiar uma equipa no Super Bowl, compreender o que era um "Twinkie" e o que significava "lockout" no desporto, medir em onças e em pés quadrados, pedir um "muffin" sem pensar que na realidade era um queque, e Dizer "I scored a deal" sem se sentir ridícula.» Talvez, na sua camada mais à superfície, parte do problema resida em a América ser tão imperdoavelmente deslumbrante.

segunda-feira, 7 de abril de 2014

GEORGE R. R. MARTIN: A GUERRA DOS TRONOS



Conheço, com a precisão de um omega, a origem do meu preconceito contra A Guerra dos Tronos. Radica no facto de  gostar tanto de O Senhor dos Anéis. Ter-me-ei convencido de que a saga escrita por George R. R. Martin [um homem bem nutrido, de longas barbas e bonezinho à chofer, apresentado numa badana como um autor de best-sellers e um autêntico rei dos guionistas de Hollywood], Game of Thrones, só podia ser uma imitação de segunda da obra de Tolkien. Por outro lado, parecia-me, por causa de uma ou outra visitas rápidas a episódios da série televisiva, que havia ali demasiadas casas reais, demasiados príncipes, e pretendentes, demasiados povos bárbaros rivais, para que, na falta de um grande entusiasmo, me não perdesse por labirintos fastidiosos.

E, aliás, onde se passava tudo? Num planeta distante? Na Terra? Em que tempo? Na Idade Média? Ou, pelo contrário, num futuro imerso em atmosfera medieval?

Esta é, no meu ponto de vista, a primeira decisão de génio. Trata-se da Idade Média, mas uma Idade Média que, espacialmente, não está submetida a nenhum território conhecido. Ou seja: é em relação ao espaço, não à época, que penetramos num mundo onde a liberdade criativa impera. A cultura é-nos conhecida, as referências históricas [e mitológicas] são, por exemplo, as de Artur e os Cavaleiros da Távola Redonda; mas aqueles povos, aquelas dinastias, aqueles lugares são a vibrante e contínua invenção de uma antropologia e de uma geografia.

E não, realmente não nos perdemos; ao fim de 10 ou 20 páginas, os nomes, sempre reencontrados mais adiante [aliás, cada capítulo está escrito na esfera de uma personagem], consolidam-se num mapa mental claro. Estou ainda no 1º volume, recomendado por uma professora de História. Sou um recém-convertido. Um neófito. Não alimento ilusões. Sei o que A Guerra dos Tronos não é: literatura. [Apre, como isto soa snobe.] Vejo perfeitamente, no recorte das personagens, a tentação de fazer delas ícones bem vincados, logotipos reconhecíveis à légua. Sob o signo do desvio e da diferença, como no caso de Tyrion, o anão, ou de Jon, o bastardo, emergem um sarcasmo e uma amargura simples como jingles bem conseguidos, que são a previsível capa da mais funda inteligência e da mais pura coragem.
Sobretudo, detecto o pecado do anacronismo: um bárbaro que, na noite de núpcias, sabe esperar pelo tempo de sua esposa, prolongando inesperadamente os preliminares, perguntando-lhe mesmo - através da única palavra que conhece numa língua comum dos povos: o "não", mas aqui balbuciado numa tímida interrogativa - perguntando-lhe, pois, se pode passar ao acto, é muito romântico e, perdoar-me-ão, muito feminino para ser credível.

Mas também adivinho o que A Guerra dos Tronos é. Ajusto expectativas e exigências. Nessa perspectiva, deixem-me adiantar já, vale bem a pena a incursão. George Martin é fulgurante na forma como trabalha sobre o lugar comum [a panóplia típica de uma certa representação do espírito medieval, com torneios e dragões incluídos] para dele extrair uma tensão e um tom invulgares. É essa dosagem que nos cativa, nos empolga, nos vicia. Uma outra expressão do mesmo reside no modo como multiplica o ruído - muitas personagens, lugares e acontecimentos, como escrevia - sem deixar nunca que se desperdice uma estória que é, no essencial, simples e atraente.

Duas noites bastaram-me para devorar - quase - o 1º volume. Regresso hoje, a casa, já com o 2º debaixo do braço.

P.S: e no entanto, uma nota negativa para a tradução e revisão. Gente que não consegue distinguir entre "honrais" e "honreis", que sistematicamente escreve: "espero que honrais", "quero que pensais", não pode passar sem reparo. Imagino o que a Teresa ali detectaria...

sábado, 29 de março de 2014

SAMUEL JOHNSON ACERCA DE UM CERTO PATETA



«Ele era pateta [ou insípido; o termo é: dull], mas era -o de uma forma nova, e isso levou muitas pessoas a pensar que era extraordinário.»
    
     Samuel Johnson [citado por James Boswell em The Life of Samuel Johnson]

segunda-feira, 24 de março de 2014

IVAN TURGUÉNEV: FUMO




Este romance de Turguénev é um órgão complexo, de uma inquietante actualidade: os diálogos nunca são obsoleta ou artificialmente literários, antes comportam o cunho credível da fala. [Os autores russos, aliás, são excelentes nessa reconstituição da oralidade, mostrando lapsos, hesitações, marcas várias de espontaneidade.] Há uma técnica amadurecida, que equipara o narrador a um maestro: narrar é, autenticamente, orquestrar. Existem círculos e planos diferentes, personagens pouco lineares, uma ambiguidade emocional e ética, a apresentação realista de discussões sociais e políticas, em salas ou quartos onde jovens fumam e se embriagam, ou a apresentação romântica de amores que intentam esconder-se, ou afirmar-se: e tudo deve ser conjugado sem erros, ou dispersão, ou previsibilidade.

O realismo do século XIX compraz-se mais na caricatura do que no retrato. Como em Flaubert - com o qual, aliás, Turguénev se correspondia - ou como em Eça de Queirós, um aspecto relevante no modo de captar a sociedade do tempo reside na atenção ao ridículo, ao excessivo, ao mau gosto, à estupidez; Bambáev é um Dâmaso, Gubarióv é um Pacheco. Detenhamo-nos por um instante no sabor tão indiscutivelmente queirosiano desta conversa:

« "Mas Gubarióv, Gubarióv, irmãozinho, para ele é que nós temos de correr! Eu decididamente venero esse homem! E não sou o único, todos na verdade o veneram. E que livro ele está agora a escrever... oh! oh! oh!..."

"Sobre quê?", perguntou Litinóv.

"Sobre tudo, irmãozinho, como Buckle, sabes... mas mais profundo... Tudo será solucionado e explicado claramente."»

"Mas já o leste?"

"Não, não li, e por sinal é até um segredo de que não devemos falar, mas de Gubarióv tudo se pode esperar, tudo! Sim!"»

Por outro lado, o romantismo é a outra face desta polifacetada composição. É até mais do que uma mera face, se estamos deveras - uma vez mais como em Flaubert ou como em Eça de Queirós - ante a história de um amor impossível, e tanto mais violento e ardoroso quanto mais imperdoável do ponto de vista das convenções sociais.

Quero assinalar 3 pontos em relação a este amor, ao amor aqui:

o primeiro diz respeito à profundidade psicológica com que as personagens são tratadas na experiência da paixão. Mesmo Irina, a femme fatale, é desenhada na convulsão interior de um dilema que a torna humana e vulnerável, não apenas uma figura de papelão, superior e sem remorsos. Podemos pontualmente irritar-nos com ela, mas quase nunca a odiamos; por outro lado, Tánia pode ser moralmente melhor do que Irina: no entanto, a maneira como a percepcionamos está longe de ser estanque; ora  é mais interessante, ora de uma melancólica sensaboria. Mesmo fisicamente, ora nos parece de uma beleza morna e pesada, que não estimula, ora a redescobrimos com um fulgor surpreendente;

o segundo tem que ver com a curiosa noção do amor como de uma essência: algo totalmente exterior a mim, que me aborda e invade como um galião pirata. Descartes e Husserl ensinaram-me que, pelo contrário, o amor ou a paixão não são um objecto exterior ao sentir, acerca do qual porventura nos enganássemos: não são senão o próprio exercício desse sentir. E, portanto, La Palisse, na medida em que estou sentindo amor, há-de ser seguramente amor aquilo que estou a sentir. Daí a estranheza com que leio a questão que uma mulher amada dirige ao homem que lhe confessa o seu amor: se ele tem a certeza; se não poderia estar equivocado. Como se lhe perguntasse: «é mesmo amor o que "vês" em ti? não seria possível estares a ver erradamente um objecto diferente, que confundisses com amor?» [Na verdade, talvez por vezes nos enganemos. Mas é porque os sentimentos coincidem em algum ponto - e se me sucede confundir amizade com amor, para exemplificar com um quiproquó frequente, é porque a amizade contém, de facto, uma parte de amor. Porém, Turguénev tem de situar as suas personagens em face de um amor hiperbólico, fora do controle da razão ou de um eu. O mar em fúria, prestes a destruir o batel a que se reduz qualquer eu];

o terceiro refere-se a um domínio tal da técnica narrativa, já de resto mencionado, que apreende a mutabilidade e a indefinição destas emoções, numa trama de claros e de escuros, ângulos de luz e ângulos de sombra, entre o que se mostra e o que se oculta, para que, de facto, o leitor não consiga antever qual das possibilidades triunfará - sendo, uma delas, a de o protagonista perder ambas as mulheres que ama, ou julga amar, ou não sabe se ama, ou quanto ama.