quarta-feira, 16 de abril de 2014
CHIMAMANDA NGOZI ADICHIE: AMERICANAH
Meu primo, cujo cognome bem poderia ser "O Mencionado", tal a frequência com que este blogue colecciona as suas opiniões em matéria de literatura - como se eu fosse o seu Boswell -, viveu vários anos nos EUA; casou-se, aliás, com Andy, mais do que uma norte-americana, uma pura nova-iorquina. Eis porque gostaria que lessem, ambos, o prodigioso - em muitos aspectos - romance de Chimamanda Adichie. Por outro lado, temo em particular a reacção de Andy: seriam, a obra em si e a minha recomendação, tomadas por uma provocação?
E, contudo, o seu poder suga-nos. Nem sempre sem crítica, ou sem indignação, mas suga-nos,
arrasta-nos para um lugar que está longe de ser neutro. Não se consegue ser-se indiferente a esta visão da América e dos americanos [tal como os percepcionamos pulverizados em ícones, em categorias e atitudes
de vida, ou em angústias e equívocos, em tiques da própria língua, como a propensão para tudo achar "exciting"; ou como os percepcionamos na má consciência dos ricos, ou na sua inocência e na boa vontade perante os pobres, o misto de condescendência e culpabilidade imersos num complexo banho multiculturalista [ou interculturalista?], desenvolvida ao longo de 700 e tal páginas segundo o olhar de Ifemelu, a protagonista, uma nigeriana que se arrancou à Nigéria e ao seu namorado Obinze, buscando nos Estados Unidos o Eldorado.
Acredito que, para a minha prima Andy, esta visão contenha um elemento irritante. Cito uma passagem que acabo de ler, e a magoaria decerto:
«Reconhecia em Kelsey o nacionalismo dos liberais americanos, que criticavam copiosamente a América mas não gostavam que os outros o fizessem; esperavam que os outros se calassem e se mostrassem agradecidos, e recordavam-lhes sempre quão melhor era a América do que a terra deles, fosse qual fosse.»
Há, nesta obra, uma arrogância de "classe": pertencer a uma minoria étnica equivaleria, de acordo com Ifemelu, a integrar uma vaga classe, não necessariamente económica, mas produzida pela percepção que os WASP têm dos não-brancos e dos brancos pobres. Embora não se reduza tudo a isso, e mais adiante Ifemelu reconheça que se trata de uma classe desunida pela sua própria natureza, e sem possibilidades de vir a unir-se. É, portanto, um romance de tese: aliás, essa "agenda" fica denunciada por um estratagema perverso: a protagonista escreve um blogue sobre «estilos de vida», denominado: Sobre Raça ou Várias Observações Sobre Negros Americanos (Anteriormente Chamados Pretos) por uma Negra Não Americana. A citação de "posts" do seu blogue torna-se, obviamente, um modo fácil de fazer proselitismo.
Diga-se, pois, que Americanah é interessante pela pulsão de descrever, pelas situações e diálogos, muito mais do que pela estória. A narrativa, propriamente, é paupérrima, e para a conhecer bastar-nos-ia a leitura da sinopse. Não que o seu desenvolvimento não esteja bem urdido, mas é simplista e, apesar dos adiamentos com que subverte as expectativas do leitor, recorre excessivamente a epifanias: o momento em que se tornaram verdadeiramente amigas; o dia em que «decidiu deixar de fingir que tinha sotaque americano»; o instante em que descobriu que um desconhecido, com quem entabula conversa no comboio, é um potencial homem a reencontrar. Porém, a atenção a uma ingenuidade bem intencionada, como um padrão americano, parece certeira e cómica. Exemplifico imediatamente; perdoar-me-ão a extensa citação, mas hão-de concordar que merece a pena:
«Na caixa, a empregada loura perguntou: - Alguém as atendeu?
- Sim - disse Ginika.
- A Chelsey ou a Jennifer?
- Desculpe, não me lembro do nome dela. - Ginika olhou à sua volta para apontar a empregada que a atendera, mas ambas as jovens tinham desaparecido para os gabinetes de prova nas traseiras.
- Foi a que tem cabelo comprido? - perguntou a funcionária da caixa.
- Bem, ambas têm cabelo comprido.
- A de cabelo escuro?
Ambas tinham cabelo escuro.
Ginika sorriu e olhou para a funcionária da caixa e ela sorriu e olhou para o ecrã do computador e passaram dois segundos arrastados antes de ela dizer num tom bem-disposto: - Não tem mal, eu descubro mais tarde e certifico-me de que ela recebe a comissão.
Ao saírem da loja, Ifemelu disse: - Estava à espera de que ela dissesse: "Era a que tinha dois olhos ou a que tinha duas pernas?" Por que é que ela não perguntou simplesmente: "Era a rapariga negra ou a branca?"»
Ginika riu-se: - Porque isto é a América. Tem de se fazer de conta que não se repara em certas coisas.»
Talvez todos os não-americanos que vivem na América gostassem de ser americanos. «[...] compreender tudo sobre a América, [...] usar uma nova pele adaptada: apoiar uma equipa no Super Bowl, compreender o que era um "Twinkie" e o que significava "lockout" no desporto, medir em onças e em pés quadrados, pedir um "muffin" sem pensar que na realidade era um queque, e Dizer "I scored a deal" sem se sentir ridícula.» Talvez, na sua camada mais à superfície, parte do problema resida em a América ser tão imperdoavelmente deslumbrante.
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3 comentários:
"A flor do hibisco" é muito melhor...mas gosto muito desta "contadora de histórias..."
Olá,
Adoro a Chimamanda. Mas a verdade é que a adoro pela TED da história única e pelo "Meio-Sol Amarelo". Mas esse livro vai fazer com que leia todos os outros livros dela (ainda agora comprei o "A cor do Hibisco".
Deste Americanah, gostei mas não como gostei do Meio-Sol. Ainda assim é sempre um prazer ler Chimamanda Ngozi Adichie.
Boas leituras
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