sábado, 11 de abril de 2015
LEOPOLDO ALAS: A CORREGEDORA
Eis um livro sobre o qual, a vários títulos, faz muito sentido escrever um comentário em Profissão: Leitor. Leopoldo Alas não é um autor conhecido do vulgo e em La Regenta deparamos com uma imensa obra do século XIX, mencionada por Mario Vargas Llosa como «o melhor romance espanhol [desse século]»; "imensa" tanto pela qualidade como pela extensão: seiscentas e tal páginas repartidas por dois tomos tornam-na um daqueles romances demorados, desusadamente demorados, em que se nos pede que adiemos o virar da folha, porque tudo exige o deleite segundo um tempo e um ritmo próprios. Dou o exemplo de uma passagem que sublinhei - não adianta nem atrasa rigorosamente um passo no desenvolvimento da trama, seria perfeitamente dispensável no desenho do esqueleto da história, e no entanto é fundamental para nos conduzir à penetração num certo estado romântico de beatitude e alegria da protagonista:
«De ramo para ramo saltavam pardais e tentilhões, sempre de bico aberto, mas nunca chegando a cantar decentemente, distraídos com qualquer coisa, travessos, a chilrear em vão.» [Não é delicioso?] «De vez em quando, caíam folhas secas dos ramos para a fonte; flutuavam às voltas, numa lenta marcha e, aproximando-se da estreita abertura por onde a água saía, começavam a deslizar rapidamente em linha recta e precipitavam-se na corrente, onde a superfície lisa se convertia em ondulada prata. Uma alvéola debicava no chão e debicava aos pés de Ana, sem medo nenhum, fiada na agilidade das asas; dava voltas e voltas, varria o pó com a cauda, aproximava-se da água, bebia, chegava de um salto à sebe, escondia-se por um momento entre os ramos mais baixos da amoreira, e, por pura curiosidade, voltava a aparecer, sempre alegre, sempre pespineta; quedou-se imóvel por um momento, como que a decidir-se; de repente, assustada, só por medo, sem o menor motivo, foi-se embora, com um voo rápido e direito ao princípio, ondulante e pausado depois, perdendo-se na atmosfera que o sol oblíquo tingia de púrpura.»
Quem me deu a conhecer o autor e, ainda não contente, me emprestou o livro, uma tradução perfeita, de Joana Morais Varela, que a Contexto publicou em 1988, chamava-me a atenção para a semelhança entre esta escrita e a de Eça de Queirós. Sem dúvida. Para além da época e de um certo carácter ibérico que os une numa eleição de temas e formas, aproxima-os a qualidade da obra. Não me atreveria a sugerir que Leopoldo Alas é até superior a Eça de Queirós, porque ele há coisas que nem a mim próprio ouso murmurar. Mas assemelha-os a ironia, em Alas porventura mais leve e mais subtil, um fôlego espantoso e paciente para o entretecer de linhas diversas e dissemelhantes numa unidade firme, e um génio da escrita que os faz reinventar as figuras de estilo inesperadas e criar a frase expressivamente dramática ou cómica.
Trata-se, como em O Primo Basílio, do estudo da tentação no seio da alma feminina virtuosa. É certo que visão é projectada pelo olhar de um homem: mas em Alas a visão em causa é uma visão carregada de seriedade e compreensão, um pouco estupefacta, talvez, mas sempre consciente de que o que se espera não é que se arvore em juiz. E, portanto, é sob o pano de fundo da mediocridade da cidade de Vetusta que se digladiam aspirações e inclinações no interior de almas nobres. A mediocridade de Vetusta, escrevi: a esse propósito, aquilatem a finura da ironia na forma como Vetusta nos é apresentada, na frase com que o romance inicia: «A heróica cidade dormia a sesta.»
Ana, a corregedora, é uma personagem feminina digna de um panteão onde não repousam [apenas no sentido em que o seu estado natural não é o repouso] aquelas que mais revisitamos.
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