segunda-feira, 25 de agosto de 2014
JOHN UPDIKE: CORRE COELHO
Falar deste romance de Updike é, antes de mais, uma oportunidade para trazer à baila dois livros de uma lista da qual, no início das férias, prometia tratar.
Um deles é O Homem que Gostava de Cães, do recém-descoberto Leonardo Padura.
A dada página, o narrador confessa:
«Eu, ao contrário da primeira vez, mantive-me sentado, com o romance que estava a ler nas mãos - tinha começado Corre, Coelho, aquele livro que Updike nunca superou.»
Parece promissor, apesar de John Updike não estar, aqui, em competição senão consigo próprio.
O outro seria A Herança Perdida, do estimulante James Wood, e aí escorrego em provocações tão maldosas como esta:
«John Updike é seguramente um dos menos trágicos dos grandes escritores, e o mais complacente de todos os escritores teológicos.»
Mal conseguira recomeçar a respirar e já, pouco adiante, embatia neste outro arrepiante comentário:
«No seu pior, a sua escrita é de um lirismo inofensivo e inchado, de uma liberalidade aristocrática, como se a linguagem fosse uma despesa sem importância para um homem muito rico e Updike acrescentasse a cada frase uma generosa gorjeta.»
Compreendo Wood. A sua sentença assassina, para além de muitíssimo bem achada, tem razão de ser. As descrições a que Updike nos sujeita estão sempre no limiar do rococó. A tradução que leio é de Fiama Hasse Pais Brandão, que consigo imaginar com sucessivos estremecimentos de volúpia perante períodos que me abstenho de transcrever.
Mas regressemos à acusação fatal: a ausência de tragicidade; sim. Posso compreender Wood. O problema da visão religiosa de Updike é a de que lhe falta o demónio. O inferno. Sigam este diálogo:
« "Ora digam lá, ele fê-los acreditar no inferno?" Harry ri. A imitação de Eccles é perfeita. [...]
«E fez? Você acredita?
«Fez, acho que sim. O inferno como Jesus o descreveu: afastamento de Deus.
«Bem, se é isso, pode-se dizer que estamos todos já mais ou menos no inferno.»
Teologicamente, esta perspectiva é moderna e interessante. Não me queixo: pessoalmente, o diabo não me faz a menor falta. A eterna ausência de Deus parece-me punição suficiente; mas Harry, o Coelho, é lúcido: sem inferno à maneira antiga, sem mal que não seja «psicanalisável» e «compreensível», não é possível esperar-se uma tragédia com alguma espessura.
A vida de Coelho está degradada. Olha em torno de si, e tudo são restos. Sem verdadeiramente traçar um plano ou decidir um rumo, principia a correr. [Metaforicamente: vai no seu carro; embora, mais tarde, assistamos a momentos de efectiva corrida a pé...] É de Deus que foge? Não creio - é mesmo de Janice, é mesmo do filho, por quem, no entanto, sente amor, de seus pais e de seus sogros, é do vazio que marca tudo o que vive e em que toca. Claro que a questão decisiva é a da incapacidade da escolha; e claro que há tragédia bastante no afogamento de uma criança recém-nascida. Ainda assim. Pergunto-me que há a acrescentar a este romance, que permitiu a Updike querer continuá-lo, numa extensa obra dedicada ao mesmo Coelho.
Uma coisa sabemos, a fazer fé em Padura: na sua corrida, Updike não conseguiu superar-se a si próprio.
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