quarta-feira, 27 de agosto de 2014

JORGE AMADO: TERESA BATISTA CANSADA DE GUERRA


Teresa Batista Cansada de Guerra é uma leitura da minha adolescência. Ou seja: algo como uma relação sexual prematura: não tinha idade para aquilo...
Há uns meses, outra Teresa, que nunca mais me veio aqui falar e de cujos comentários sinto saudades, a mesma que me apresentou vários autores - d'Ormesson bastaria - e me devolveu Brasillach, chamava precisamente a atenção para uma secreta afinidade entre passagens de dois escritores tão diversos, temporal e histórica, geográfica e culturalmente. Eu elogiava a beleza de 15 páginas que Brasillach demorava a narrar uma noite de amor, e a autora de A Gota de Ran Tan Plan recordou-se, a esse propósito, do encontro entre Teresa Batista e Daniel.

Há diferenças que não posso deixar de assinalar. Brasillach escolhe o pudor como estratégia narrativa e descritiva. Não quer contaminar o que deve conservar-se secreto. Amado envereda pela exposição, metafórica, é certo, mas uma exposição ainda assim: fala do pássaro de Daniel, que voa nas mãos de Teresa, e da espada daquele, ou da baínha e da flor desta; trata-se de encenar um espectáculo, e já não de nos conduzir, sob a chama de um fósforo, sem quebrar a essência da obscuridade. Nesta comparação - e o que digo liga-se a uma questão pessoal, de gosto - Jorge Amado está longe do poder de Brasillach, baseado inteiramente na sugestão.


Porque Jorge Amado é um dos pais de Mia Couto, e isso enerva-me um pouco: o escritor cuja linguagem funciona como uma etiqueta cultural, se não étnica: a brasilidade, como o outro reivindicará a moçambicanidade, ou seja o que for. Tem graça no momento antes de se esgotar numa fórmula. Torna-se imediatamente datado: relido, 30 anos mais tarde, é insuportável. Aqueles diálogos com o leitor, a quem vai tratando de «meu chapa», ou «irmãozinho», ou «amigo» [«o amigo é um fode-mansinho»], ajoujados de idiotismos, são pedaços de prosa cuja leitura devém penosa.

Arrumada esta falta de fé num certo vício estilístico do autor [que, aliás, como veremos adiante, não inquina completamente a sua escrita, capaz de alcançar elevados cumes] , assentemos no que realmente importa. Jorge Amado é magnificente na construção das estórias e na compreensão das personagens. A trama de qualquer um dos seus romances parte de uma ideia central, sumarenta, que se vai repartindo em diversos fios, sem se perder a visão de conjunto. Teresa Batista Cansada de Guerra vive de uma estrutura dinâmica, assumidamente folhetinesca, porque cada capítulo se detém numa certa fase da sua biografia, não necessariamente por ordem cronológica, mas cada um desses momentos é riquíssimo de acontecimentos e de figuras. Melhor do que esse aspecto, ou tão bom como ele, só a compreensão das suas personagens, o mecanismo de uma certa empatia, que tem muito que se lhe diga. Parágrafo.

Não se é neutro. Os coronéis, os capitães, muitos juízes ou polícias, são figuras abomináveis. Mas as prostitutas, por exemplo, são mulheres de uma insuspeitada sensibilidade, generosas e fortes. No episódio sobre a epidemia que grassa na povoação, quando o doutorzinho e a enfermeira-chefe se recusam a expor-se, e fogem, são as putas, lideradas por Teresa Batista, que partem a vacinar a população, sem o menor receio; e mesmo personagens infames, como a tia de Teresa, que a criou [e a vendeu, ainda menina, ao capitão Justiniano] e seu marido, não são simplesmente infames: são trágicas. Nem digo tragicómicas: são trágicas. Jorge Amado consegue infiltrar-se no interior da sua consciência, e nós compreendemos que a sua indignidade moral convive com duríssimas tristezas, frustrações e a mais pura infelicidade.

O trecho em que seguimos o pensamento de Rosaldo, tio de Teresa, bêbedo, preguiçoso e cobarde, é impressionante. É um momento de génio: o capitão Justiniano vem buscar a menina; a tia recolhe o maço de notas e um anel de pechisbeque. Rosaldo está sentado, incapaz de tomar uma atitude. Quem nos conta o que sucede é o narrador; mas, no seu discurso, intercalam-se as palavras pensadas pelo tio. E neste complexo, apercebemo-nos de diversos sentimentos, ao mesmo tempo: que Rosaldo esperava o momento certo para abusar da menina; que a via gulosamente crescer; que odeia o capitão; que o teme; mas, ainda, que uma vaga ressonância moral [hipócrita, é claro] o faz interpelar, na sua mente, a mulher: Como é que tu é capaz de vender a menina? a filha de tua própria irmã? Deus não vai te perdoar nunca. Mas todas estas dimensões interiores aliadas à sua impotência, ao seu pavor, que o colam ao sofá, sem um gesto. É um excerto assombroso, em termos de escrita. É o «outro lado», mais interessante na minha óptica, de Amado. Quando se despe de fórmulas. Quando não pactua com uma certa facilidade popular. Quando, meu chapa, encontra em si uma energia em que se cruzam a sabedoria da simplicidade e a autêntica originalidade.   

2 comentários:

redonda disse...

Gostei muito deste livro, assim como de Gabriela, Cravo e Canela, Dona Flor e os seus dois maridos, Tieta do Agreste e todos os que li de Jorge Amado.

Teresa disse...

Mais uma belíssima análise, José.

Fico grata por se ter lembrado de mim ao examinar um livro que continuo a considerar belíssimo, e mais grata fico ainda pelas suas imensamente amáveis palavras.

Lê-lo é sempre um prazer, mas é também um acto de reflexão, e dou comigo a reexaminar as minhas impressões à luz das suas.

Feliz Natal!

P.S. Que pena este post não ter sido escrito um dia depois, o dia dos meus anos! :)