sexta-feira, 15 de agosto de 2014

EDITH WHARTON: SONO CREPUSCULAR



Fui-lhe apresentado da forma que narrarei em duas palavras: há semanas, em seu sumarento editorial, no caderno do Expresso, que dirige, Pedro Mexia referiu uma recém-publicada tradução portuguesa de contos de Edith Wharton. Bastou isto. Procurei, na minha biblioteca predilecta, contos da autora; em vez disso, acabei por me decidir por um seu romance.

Antes de mais, um comentário sobre o tradutor: não só a tradução propriamente dita me soa muito bem, e me parece excelente - com a justificação criteriosa de algumas opções -, como o enquadramento histórico e cultural do romance é exaustivo, muito culto, raramente no limiar do excesso picuinha e do exibicionismo, os quais, mesmo quando sucedem, não deixam de ser interessantes. Pode parecer desnecessário, mas nenhum leitor se deve sentir coagido a ler o que dispensa, e a verdade é que esta estória ganha cambiantes e contornos quando os pormenores fazem sentido à luz dos loucos anos entre as Grandes Guerras, que o tradutor reconstitui em notas completíssimas. De momento não tenho comigo o nome deste senhor, mas brevemente estarei em condições de reparar a injustiça.

Evitemos os adjectivos grandiloquentes ou a apologia fácil de E. W. Mas agrada-me supinamente a sua abordagem dos sentimentos. Recorda-nos George Eliot. Middlemarch. Não há punhadas nas portas da sua escrita nem solas ecoando pesadamente sobre o soalho da ficção que ela constrói; tudo é, pelo contrário, o movimento de subtis delineamentos, ambíguas aproximações. O traço grosso não existe: apenas pinceladas impressionistas. A analogia merece que nos detenhamos: numa pintura impressionista concluída, percepcionamos figuras; mas imaginemos agora que seguimos a produção do quadro, as linhas que não se agarram, as cintilações aparecendo diante dos nossos olhos - como adivinhar a "figura" que nascerá, a paisagem, as nuvens, o mar, um barco?
Sono Crespuscular também  não progride segundo uma linha recta. Sentimos pulsações. Breves emergências. Julgamos ver os pontos em que se vai desenhando uma paixão perversa, mas será que o é? Será mesmo uma paixão? [Haveria outras explicações.] E em que medida perversa?


Por outro lado, prezo, como em todos os romances da minha vida, a "orquestração". Uma família complexa, de relações que se vão sobrepondo em camadas, um primeiro marido, com quem Pauline ainda se dá, ou que ajuda, moral e economicamente, um segundo marido que se preocupa com o enteado e o protege [a não ser que se não trate exactamente de cuidado, mas de uma recôndita outra intenção], ou dois meios irmãos que se amam, a paixão, o tédio, o cinema, a nova música, as novas ideias, as novas curas, são inúmeros personagens e elementos, que requerem uma visão de conjunto, e mediações bruscas, velozes, primorosas neste romance.

Por fim, rendo-me a esta fenomenologia do auto-engano. Recordemos de novo George Eliot que, nesse aspecto, nos deslumbra. Mas Wharton também. Será um segredo de escritoras? E só de algumas? Não. Shakespeare e Dostoievski descrevem brilhantemente as operações de uma consciência que refaz o que está diante de si, da forma mais conveniente, mais desejável para si própria. Não uma consciência cega, pois que, num certo ponto de si, talvez saiba a verdade, mas que, obstinadamente, a si mesma a mascara: sob uma «análise», uma racionalização, uma fé, um ideal. Pauline revela-se, a esta luz, uma personagem admiravelmente patética. E naturalmente cómica. E triste, embora nem dessa tristeza se aperceba.

Edith Wharton, sim. Obrigado ao recomendador.

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