quarta-feira, 20 de agosto de 2014

GRAHAM GREENE: OS COMEDIANTES



     Há que principiar pelo que me captou em primeiro lugar, e mais fortemente: a relação de Mr. Brown com uma mulher casada, a esposa de um embaixador sul-americano no Haiti; por experiência, própria ou imprópria [com o segundo termo da disjunção, pretendo simplesmente significar: experiência não pessoal, mas adquirida por interposta pessoa - e deixemos de parte os pormenores], concebo que a insegurança seja parte significativa de uma relação clandestina. Pormenores minúsculos ruminam obsessivamente no espírito de quem não está com a amante senão raramente, e em segredo.

     «- Como está o Luís?
     «- Na mesma - respondeu ela. - Sempre na mesma.
     «Contudo, eu pensava que ela já o amara. Este é um dos espinhos do amor ilícito: as mais voluptuosas provas de amor da nossa amante são o testemunho de que o amor não é durável

     É uma insegurança que raia a paranóia: se não é o "legítimo" esposo dela que provoca ciúmes, é - como neste romance - o seu filho, possessivo, mimado, controlador. De forma que se cria um quadro em que todas as palavras e todos os gestos de Martha parecem ter um sentido oculto, onde é sempre possível ler «já não gosto de ti» ou: «não o suficiente para correr riscos». Ou seja o que for. Nesta descrição, Greene revela-se de uma sensibilidade e de uma acutilância magistrais: reconheço aqueles diálogos, aquelas suspeitas, os medos, os amuos, os remorsos. Ouvi falar.

     "Os Comediantes" é um título irónico e, nessa medida, enganador. Poderia pensar-se que estamos em face de um grupo de "indiferentes" aos acontecimentos do Haiti de "Papa Doc" e seus Tonton Macoute. Não invento; leio na contracapa: «[Na acção] intervêm algumas personagens ambíguas que mais parecem, de facto, "comediantes", tão indiferentes se mostram à tragédia que os cerca». É falso: Mr. Brown, já mencionado, Mr. e Mrs. Smith, até mesmo o impagável Jones, que se auto-intitula Major Jones, um puríssimo Falstaff, personagens cujos caminhos convergem, casualmente, para o país de um tirano, estão muito longe da indiferença. São cómicos precisamente porque os seus comportamentos não se ajustam à realidade. São cómicos porque guiar-se por um ideal devém facilmente risível num mundo denso de realidade. A comédia não resulta frequentemente do desajustamento entre o princípio do prazer e o princípio do real?

     Não é um dos mais famosos romances de Greene. Aproveito, portanto, para contar por que - e de onde - o trouxe. Mas acreditariam se vos dissesse que, em certos dias da semana, há um jovem que, no átrio do Centro Comercial Palmeiras, liquida livros ao preço da chuva? Edições «Livros do Brasil» [prestem atenção!] a 2,50: dois euros e cinquenta cêntimos!?

     Os Comediantes constituiu uma surpresa e tanto! O registo cómico da primeira parte, quando Brown, os Smiths, Jones, e um par de maravilhosos secundários se conhecem, num cargueiro holandês, a caminho do Haiti, vive tanto da sua ingenuidade [uma ingenuidade ridícula, porém com surpreendentes vislumbres de grandeza] como de uma espécie de surrealismo burlesco; mas é também o momento em que se antevê e adensa o enigma dos seus passados, dos percursos que os conduzem ao seu destino. Se a segunda parte, já em pleno terror haitiano, permite o cruzamento com outras personagens, a clarificação de uma parte dos mistérios que pesam sobre aqueles indivíduos e o desenvolvimento de uma história central, sobre uma paixão ilícita, é a terceira parte que nos devolve o Major Jones no seu melhor. Que faz, deste, uma personagem inesquecível e de primeiro plano. O aventureiro cómico, o burlão inocente, o materialista sonhador. Assistimos, perplexos, rendidos, à confissão sincera do grande mentiroso: eu diria que poucas vezes um romance tragicómico atinge, a este ponto, todo o esplendor da sua razão de ser.




Sem comentários: