sábado, 9 de agosto de 2014
CHATEAUBRIAND: MÉMOIRES D'OUTRE-TOMBE
Não leio a versão integral, que se basearia em 3 500 páginas manuscritas, mas a antologia a que pude aceder. Esta, curiosamente, tem o suplementar interesse de haver sido compilada, anotada e prefaciada por Jean-Claude Berchet, que é um perseguidor meticuloso de tudo quanto diga respeito a Chateaubriand: os factos, os textos, os erros.
Os erros: há, em Chateaubriand, algo que prenuncia o talentoso desleixo de um Borges. [São os dois displicentes mais geniais que conheço.] Uma ausência de rigor, com um charme muito próprio, como se o espírito fosse sempre mais importante do que a letra de uma citação, e como se o génio legitimasse a distorção de qualquer referência de forma a conduzi-la precipitadamente a estar de acordo com o nosso pensamento; em suma: Chateaubriand é tão pouco preciso nas datas, nomes, dados factuais, até no número de irmãos, como na transcrição da frase em latim, ou em inglês. Está acima deles. O sumo do que nos quer contar é o que verdadeiramente importa. Torna-se fascinante acompanharmos as emendas de Berchet, não como se admoestasse o autor de sua eleição, mas para refazer honestamente a verdade, logo que este desliza. Um exemplo: Nihil Longe est a Deo, retém Chateaubriand de Santo Agostinho; e, imediatamente, Berchet: «Mas Chateaubriand cita inexactamente o texto original: nihil longe est Deo, quer dizer, nada está longe para Deus [...]»
As memórias são maravilhosas, a vários títulos. Pelo próprio conceito, antes de mais: memórias que nos ecoam do além, no sentido em que, em vida do autor, eram já registadas para publicação após a sua morte. É a ideia de Memórias Póstumas, como as que Machado de Assis virá a atribuir ao seu Brás Cubas. Afirma Chateaubriand: «Aqueles que sejam perturbados por estas pinturas e tentados a imitar estas loucuras, aqueles que se liguem à minha memória pelas minhas quimeras, devem lembrar-se que não escutam senão a voz de um morto. Leitor, que nunca conhecerei, nada ficou: não resta de mim mais do que o que eu sou entre as mãos do Deus Vivo, que me julgou»; em segundo lugar, a beleza, tão francesa [Pascal, Montaigne], da sua escrita, que as palavras que acabei de traduzir perfeitamente testemunham: é de uma vivacidade poética, de uma profundidade «sólida e leve», que não nos fatigamos de sublinhar; em terceiro lugar, a graciosidade dos episódios de infância ou juventude, a inteligência na análise dos sentimentos, das relações, das expectativas, dos tremendos desânimos, das personalidades. Certos relatos são clarões da infância, ligados entre si por uma interpretação tranquilizadora. Toca-me particularmente esta: «Certo marinheiro, ao sair dessas cerimónias, embarcava fortificado contra a noite, enquanto outro regressava ao porto e se dirigia ao edifício iluminado da igreja: assim a religião e os perigos estavam continuamente em presença, e as suas imagens apresentavam-se inseparavelmente ao meu pensamento.» Por fim, a penetração no espírito de uma época. A tomada da Bastilha. A paixão das massas. Luís XVI. A Assembleia Constituinte. Mirabeau. Robespierre.
Imagino que me retrucam: e para a História, o que valem estas memórias de um génio que não prima pela exactidão? Obrigado por perguntarem. Têm um valor extraordinário, porque se trata de uma avaliação psicológica de caracteres, feita com uma grande profundidade. O retrato de Luís XVI é, desse ponto de vista, soberbo. Confirmemo-lo na subtileza desta síntese, a que certamente Stefan Zweig foi beber, quando redigiu o seu Maria Antonieta: «Luís XVI não era falso; era fraco: a fraqueza não é a falsidade, mas toma-lhe o lugar e preenche-lhe as funções.»
Os livros são, frequentemente, diálogos com o além-túmulo; alguns terão sido escritos a pensar na posteridade; mas não há muitos que fossem, de raiz, criados já com esta liberdade e esta leveza em relação ao presente do autor. Há poucos que se façam sob o signo desta espécie de pacto com a verdade.
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1 comentário:
Sobre Chateaubriand, recomendo-lhe este, vai gostar muito:
Mon Dernier Rêve Sera Pour Vous
Um beijinho.
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