segunda-feira, 13 de setembro de 2010

MARIA HELENA DA ROCHA PEREIRA E O ACORDO ORTOGRÁFICO

Quando entrei para o curso de Filosofia, desgrenhado e deslumbrado, estava disponível para me entregar de corpo e espírito às mais ínfimas experiências e descobertas.
Testava as novas ideias, os textos e os autores que lia pela primeira vez, os professores, os colegas. E no meio desse cadinho de experiências que o curso de Filosofia me proporcionava, lembro-me da leitura de A República, de Platão, numa volumosa edição da Gulbenkian, com folhas rijas, amareladas, na recomendadíssima tradução de Maria Helena da Rocha Pereira.

A minha admiração por esta mulher data de então. Não sabia que estivera entre seguir matemáticas ou seguir clássicas, digamos assim (o que só dignifica, como escolha propriamente dita, a sua decisão), nem que fora a primeira mulher a ingressar na Universidade de Coimbra. Mas desde que li A República que tenho consciência de que uma tradução feita por Maria Helena da Rocha Pereira é uma tradução rigorosa e exigente.

Leio, numa entrevista que deu ao Expresso, que, ainda muito activa nos seus 85 anos, é uma entusiasta defensora do Acordo Ortográfico, em cuja construção, aliás, de alguma forma terá colaborado. Sendo eu alguém que discorda do acordo, mas ansioso por discuti-lo com seriedade, procurando e sopesando, com respeito, os argumentos dos que o defendem, não posso deixar de me deter, por essa razão mais, nesta entrevista de uma mulher que admiro há muito.

Os seus argumentos? Na verdade, não há argumentos. Ou melhor, há um, que vejo sistematicamente repetido por todos os defensores, numa única fórmula: a necessidade de uma "uniformização" da língua. Ora trata-se de uma falácia, porque "a necessidade" dessa uniformização, que se menciona como prova, é, precisamente, o que me parece que fica por provar. Se pusermos de parte as razões estratégicas, de interesse estritamente político e económico, que valem o que valem, não encontro qualquer motivo histórico, etimológico, sobretudo cultural, que aconselhe essa unificação.

Há, parece, uma questão de imposição da língua portuguesa no mundo, que a uniformização facilitaria. Maria Helena da Rocha Pereira refere o ridículo de, «nas grandes assembleias internacionais», ter de se fazer «uma versão em ortografia brasileira e outra em ortografia portuguesa»; concordo em absoluto que se trate como ridícula a solução achada nessas «grandes assembleias internacionais»: só me pergunto por que razão fazê-lo, mesmo na falta de um acordo ortográfico. Será porque os brasileiros não entenderiam um texto escrito no português de Portugal? Ou porque os portugueses se sentiriam ofendidos, caso se optasse por redigir uma acta, por exemplo, no português do Brasil? Mas, desse ponto de vista, pergunto-me por que usarão unicamente duas versões. Por que não acrescentam uma, no Português de Moçambique, uma, no de Angola e outra no de Cabo-Verde?

Na minha perspectiva, a diferença é, em si mesma, uma riqueza. Que haja diversas formas de usar a mesma língua, dificilmente me parece constituir um problema. As minhas leitoras do Brasil continuam, espero, a ler o que vou escrevendo no meu português com excesso de "consoantes ociosas" e de acentos. Não creio que se incomodem com isso, ou que disso se queixem. Faz parte de tudo o que sou - é uma maneira de me exprimir que me é própria. Pela minha parte, gosto, cada vez mais, de penetrar os textos dos escritores brasileiros, e parte do interesse que a sua prosa e a sua poesia têm, para mim, reside precisamente na visita que faço a esse jeito particular, a esse modo seu de redigir as palavras, que transmite, ao mesmo tempo, toda uma cadência e uma musicalidade, que me encantam, mas não são minhas. Perdão: que me encantam porque não são as minhas.

Há, no aparato do português de Portugal, funções e vias que não devem ser aparadas como se aparam unhas. Há, no português de Portugal, algo que tem que ver com a personalidade dos portugueses. Prolixos, complicados, excessivos. Não é uma virtude nem um defeito: é uma especificidade. Há, no português do Brasil, uma simplificação adorável - digo-o sem o menor paternalismo -, que os não impede de falar bem ou escrever bem. Quando leio Graciliano Ramos, não preciso de tradução. Não quereria vê-lo vertido para um português que não fosse o seu. É assim que o quero ler. Como ele escreveu. Não de outro modo.

A prosa vai longa. A minha pátria é, como em Pessoa, a língua portuguesa. No único acordo que considero concebível: a de um mosaico em que cabem todos os jeitos e modos, todas as diferenças e todos os desacordos.

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

ALEJO CARPENTIER: OS PASSOS PERDIDOS


Um véu mitológico cobre este romance. Não conseguimos iniciar a sua leitura num estado de absoluta virgindade: no momento em que o folheava, na FNAC, certo de que o levaria comigo, tinha já sido conquistado pelo nome do seu autor, este "Alejo Carpentier"que desperta ressonâncias míticas e (o)cultas na minha memória; pelo próprio título, Os Passos Perdidos, perfeitíssimo; ou por esta referência da badana: «Diz-se que após ler a obra de Alejo Carpentier, Gabriel Garcia Marquez terá deitado para o lixo o seu primeiro manuscrito de Cem Anos de Solidão, e começado outra vez do zero.»

Quando começo a ler, receoso da desilusão, sou imediatamente captado pela sublimidade da escrita. Há uma subtil força do estilo, como numa melodia de Bach, que, para se realizar plenamente, não carece de fórmulas espectaculares, nem teme nem evita as frases longas, construindo, com elas, objectos estéticos e de sentido que não dão repouso, e a cuja fruição nos rendemos por completo. Vejam aqui, não, talvez, o melhor dos exemplos, mas um que me toca particularmente, a mim que fiz, há pouco, uma demorada viagem em avião:

«Depois de alguns minutos, os nossos ouvidos advertiram-nos de que estávamos a descer. Subitamente apercebemo-nos de que as nuvens nos rodeavam, e que o voo do avião se tornava vacilante, como que desconfiado de um ar instável que o soltava inesperadamente, o recolhia, lhe deixava uma asa sem apoio, o abandonava em seguida ao ritmo das ondas invisíveis.»

O que o narrador nos conta é uma história que flui através de situações, estatutos, géneros de actividade ou estruturas de vida, cuja realidade não sonharíamos questionar na sua verosimilhança: o teatro, como mundo em que a mulher, Ruth, se encapsula, sob a forma de uma peça a que julgava entregar-se por alguns meses, e se tornará no seu destino: frases e gestos repetidos, com os quais envelhecerá; ou a música, ou a história da música, a que o protagonista finge dedicar-se, não a levando já a sério, sem motivação, mas que, por fim, será a via de uma revolução decisiva na sua vida. No fundo, todo este romance se escreve tendo o teatro e a música como padrões essenciais: a representação, os silêncios («Silêncio é palavra do meu vocabulário. Tendo trabalhado a música, usei-o mais do que os homens de outros ofícios. Sei como se pode especular com o silêncio, como se pode medi-lo e enquadrá-lo. Mas agora, sentado nesta pedra, vivo o silêncio»), os contrastes, as dissonâncias, a perfeita harmonia e a cativante desarmonia.

Numa nota sobre o autor, refere-se, em dado passo, que a personagem principal deste romance é a paisagem. Qualquer coisa assim: a paisagem abrupta e primitiva, raramente visitada pelo «homem civilizado»; há que acrescentar que, se esta formulação poderá tornar-se contraproducente, afugentando alguns leitores (a mim afugentaria), a verdade é que essa "personagem", a paisagem, posta como uma realidade outra, num tempo outro, irradia uma beleza redentora. É, também para o leitor, de algum modo, a procura de um tempo original, de uma vivência primordial.

Por outro lado, essa procura tem, como seu ponto de partida, um homem urbano, imerso numa rede de hábitos cultos, leituras filosóficas, referências artísticas. E, em síntese, do meu ponto de vista, nesse paradoxo reside o fascínio maior da obra: se essa rede de hábitos, que envolve o protagonista, constitui o território de que ele visa libertar-se, quando, cada vez mais, se lhe começa a revelar na sua desprezível inautenticidade, ela oferece-lhe, simultaneamente, os meios de uma reflexão inteligente e de uma busca que não é simples despir-se de camadas de sentido: a reflexão e a busca empreendidos por um filósofo existencialista, mais do que por um Alberto Caeiro visando a pura comunhão com o sol, a pedra e a água. E com o silêncio.

É este cruzamento entre ruído e silêncio o segredo de um livro maravilhoso.

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

VIRGINIA WOOLF: MRS. DALLOWAY


Tanto Ulisses como Mrs. Dalloway são romances dos anos 20. O primeiro foi sendo publicado, numa revista periódica, a partir de 1918, e editado, em livro, em 1922; e o segundo, em 1925. Por que razão me parece importante esta comparação? Porque em ambos se trata do mesmo complicado e, a limite, impossível tipo de busca: a de um monólogo interior, misto de sensações (de que o sujeito iria tomando fragmentariamente consciência), observações, ideias não muito explícitas, surpreendentemente interligadas, como se a propósito de minúsculos e velozes quase-nada.

Em Mrs. Dalloway (o livro de Virginia Woolf que prefiro, ao invés de As Ondas, por exemplo, estrangeiro e longínquo), Clarissa Dalloway é-nos apresentada como uma mulher solitária e infeliz. A narradora não coincide rigorosamente com ela: é uma voz, mas essa voz, produtora da narração, não tem autonomia, não é ninguém. Vai-se colando à ebulição interior da protagonista. Contudo, acompanhando esse movimento ilógico, saltitante, sem eixo nem fio internos, reproduz, de fora, a sua mobilidade distraída, desconexa, perturbadora.

Há algo mais interessante do que isso: como em certas danças de rua, em que um rapaz se move durante um certo tempo para, ao tocar na mão de um comparsa, o fazer começar, por sua vez, a dançar, como se lhe houvesse transmitido uma corrente de energia, também esta narradora vai mudando de subjectividade: persegue Mrs. Dalloway até que, no percurso, esta se cruza com Septimus e sua jovem esposa, ocupando então, sucessivamente, estas novas subjectividades; regressa, depois, a Clarissa Dalloway, que, de algum modo, a "transmite" a Peter Walsh: um antigo amigo que a visita, muitos anos após, nunca tendo sido capaz de resolver a sua relação com ela e nunca, sequer, porventura, a tendo compreendido.

O efeito é inovador, é impressionante. Virginia Woolf domina magistralmente a técnica, que inventou, para provocar esse efeito. Noutras obras, a autora perde-se, desconcentra-se. Confunde o leitor. Nesta, porém, nunca divaga na sua dispersão; sem os pôr directamente face a face, contrapõe diferentes sistemas de questões e de problemas, diferentes sensibilidades, diferentes dilemas, diferentes valores e vivências. As personagens poderão nem saber umas das outros, seguindo cursos perfeitamente paralelos. Ou, quando se encontram, e interagem, são incapazes de suspeitar todas as consequências, para o outro, do que lhe disseram ou lhe confessaram.

E quem é Mrs. Dalloway? Que sabe, realmente, ela de si? Ou que quer de si? Que quer da sua vida? O que a mantém activa? O que lhe evita o suicídio? Que sentido tem a existência desta mulher de 52 anos (idade que refiro, porque é precisamente a minha) que poderá ter falhado todas as escolhas críticas e decisivas, mas não aceita errar ou negligenciar a preparação de uma grandiosa festa, derradeira máscara do seu vazio?

terça-feira, 7 de setembro de 2010

FRIEDRICH NIETZSCHE: THE PRE-PLATONIC PHILOSOPHERS [tradução, prefácio e comentário: Greg Whitlock]


Persiste como convicção própria do senso-comum europeu a ideia de que a filosofia é uma espécie de reflexão que só na Europa se compreende e se conhece bem: de que, em suma, só entre nós se cuida.
O livro que tenho vindo a ler é, a vários títulos, uma prova do contrário. Chama-se The Pre-platonic Philosophers; é de Nietzsche; se aqui, estranhamente, o refiro no seu título inglês, faço-o porque o que me importa é, de momento, a tradução para inglês desta série de lições que Nietzsche leccionou sobre o tema. A tradução em causa foi empreendida pelo norte-americano Greg Whitlock. A obra foi editada pela University of Illinois Press.

Ou seja, é um académico americano que se dedica à tarefa de recuperar um conjunto de escritos, de Nietzsche, a que os melhores tradutores europeus do filósofo nunca deram a devida importância; ou a que alguns, em vida, não tiveram tempo para se entregar (sendo que os piores a usaram desenquadrada e abusivamente), e que, por motivos que podemos imaginar, os jovens académicos contemporâneos preferem ignorar: 1. porque são, afinal, rascunhos, meras notas de trabalho, com lacunas várias; 2. porque são textos que implicariam remissões que o próprio Nietzsche, ou não fez, ou fez abreviadamente; 3. porque são textos com longas citações em grego (e inúmeros termos gregos incorporados na prosa alemã) etc, etc. Eu imagino: dificuldades suficientes para fazer do manuscrito um petisco que tem sido melhor deixar intocado.

E no entanto, como Whitlock lembra - no prefácio e no excelente comentário, autêntica e fascinante dissertação académica com que conclui o livro -, estas lições oferecem teses muito importantes para a redescoberta do «primeiro Nietzsche» (porventura ainda, mais filólogo do que filósofo). De resto, o próprio título, que é uma provocação, encerra já em si uma dessas teses: a de que o pensar de Sócrates faria ainda parte do ciclo da filosofia trágica dos gregos, e que é Platão, primeiro filósofo misto, que pode ser visto como o coveiro de todo o movimento espiritual que o antecede. E, ao contrário de Platão, Sócrates não contém mistura: representa ainda um tipo puro, porventura o último, de filósofo e de filosofia.

Whitlock, descrevendo as rivalidades e inépcias que fazem parte da forma como os académicos, qual abutres, têm, nos últimos anos, sobrevoado os textos de Nietzsche (e as malfeitorias a que os sujeitaram), mostra a praticamente ignorada importância desta série concreta de lições que Nietzsche preparou para um curso. Revelam limpidamente a posição do filósofo, a qual é, no que respeita ao modo de abordar os antigos gregos, muito diferente da de pensadores como Hegel ou Heidegger: enquanto que Hegel e, sobretudo, Heidegger pareciam mais preocupados em usá-los como meios para atingir a verdade a que, segundo eles, só com eles mesmos se completaria, Nietzsche tem, antes, a intenção de mergulhar na civilização grega. Não se compreendem os filósofos pré-platónicos à luz do mundo ou da vida de hoje; nem da ética ou da estética que se queira utilizar como critério actual. Não existe analogia: compreendemo-los na medida em que nos despedimos de nós próprios, e entramos numa outra realidade, com a sua lógica interna e os seus valores e critérios intrínsecos.

E isto, não a recuperação da antiguidade, não o olhá-la a partir de uma lente actual, mas o acto de nos introduzirmos nela, sem preconceitos, é o que torna a lição de Nietzsche tão bela e tão interessante.

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

COLETTE: CHÉRI


Na minha busca, um pouco insana por vezes, de obras esquecidas, sobre que tenha ouvido falar, aqui, ou acerca de que haja lido alguma coisa, ali, deparei, por acaso, num alfarrabista, com Chéri. É um livro de Colette. Na altura, Colette intrigava-me. Conhecia-a mal, ou, sejamos rigorosos, não a conhecia a não ser de vagas mas fascinantes referências; quis resgatá-la às teias-de-aranha, ao pó das estantes. Trouxe-o comigo.

Na contracapa, por baixo de uma fotografia da autora, escrevendo, sob o olhar atento de um gato e a luz de um candeeiro de tecto, li: Beaucoup plus qu'une histoire de gigolo.

Chéri é, talvez, «muito mais do que uma história de gigolo», mas é, também, uma história de gigolo. Léa, banhando-se orgulhosamente naquele limiar da idade em que uma mulher, podendo ser ainda interessante e desejável, sabe que a fronteira está, imperceptivelmente, a ser transposta, e que, um dia (não distante), os homens deixarão de a mirar e desejar, faz, entretanto, de certo jovem o símbolo do seu poder e da sua capacidade de sedução; o objecto de admiração e de inveja por parte das outras mulheres.

Tanto quando me recordo deste romance, o que lhe encontro de maravilhoso é uma inexplicável e perturbadora comunhão entre a superficialidade e a profundidade. Porque há um culto do gosto do efémero, do leve, do vazio, mas, ao mesmo tempo, uma descida à angústia e ao sentimento que se ocultam sob essa superfície: o próprio protagonista, na sua inconstância, vai amadurecendo, de algum modo. Chéri é filho de uma cortesã e de pai desconhecido; vive com Léa (uma amiga de sua mãe), com a qual não conseguirá romper definitivamente. Nem no momento decisivo, em que se espera que o faça pelo casamento com uma jovem rica, que o ama.

Que tem Léa, vinte e cinco anos mais velha do que Chéri, para oferecer-lhe? De que é feita a sua sedução? De que vive o seu amor impossível, desadequado e, contudo, irresistível, como o longínquo apelo que nada pode calar? Há, talvez, uma tragédia latente, numa história que evita assumi-la. Oiço, no seu subsolo, o mal do envelhecimento e a inversão do romantismo. Não causa, hoje, o frisson que terá provocado em 1920, quando pela primeira vez se publicou. Mas resistiu ao tempo. Vê-se, com inusitado prazer, a vibração de Paris dos anos 20.

domingo, 5 de setembro de 2010

CESÁRIO VERDE: CRISTALIZAÇÕES

Cristalizações


A Bettencourt Rodrigues

Faz frio. Mas, depois duns dias de aguaceiros,
Vibra uma imensa claridade crua.
De cócoras, em linha, os calceteiros,
Com lentidão, terrosos e grosseiros,
Calçam de lado a lado a longa rua.

Como as elevações secaram do relento,
E o descoberto sol abafa e cria!
A frialdade exige o movimento;
E as poças de água, como em chão vidrento,
Reflectem a molhada casaria.

Em pé e perna, dando aos rins que a marcha agita,
Disseminadas, gritam as peixeiras;
Luzem, aquecem na manhã bonita,
Uns barracões de gente pobrezita
E uns quintalórios velhos com parreiras.

Não se ouvem aves; nem o choro duma nora!
Tomam por outra parte os viandantes;
E o ferro e a pedra — que união sonora! —
Retinem alto pelo espaço fora,
Com choques rijos, ásperos, cantantes.

Bom tempo. E os rapagões, morosos, duros, baços,
Cuja coluna nunca se endireita,
Partem penedos; cruzam-se estilhaços.
Pesam enormemente os grossos maços,
Com que outros batem a calçada feita.

A sua barba agreste! A lã dos seus barretes!
Que espessos forros! Numa das regueiras
Acamam-se as japonas, os coletes;
E eles descalçam com os picaretes,
Que ferem lume sobre pederneiras.

E nesse rude mês, que não consente as flores,
Fundeiam, como esquadra em fria paz,
As árvores despidas. Sóbrias cores!
Mastros, enxárcias, vergas! Valadores
Atiram terra com as largas pás.

Eu julgo-me no Norte, ao frio — o grande agente! —
Carros de mão, que chiam carregados,
Conduzem saibro, vagarosamente;
Vê-se a cidade, mercantil, contente:
Madeiras, águas, multidões, telhados!

Negrejam os quintais, enxuga a alvenaria;
Em arco, sem as nuvens flutuantes,
O céu renova a tinta corredia;
E os charcos brilham tanto, que eu diria
Ter ante mim lagoas de brilhantes!

E engelhem, muito embora, os fracos, os tolhidos,
Eu tudo encontro alegremente exacto.
Lavo, refresco, limpo os meus sentidos.
E tangem-me, excitados, sacudidos,
O tacto, a vista, o ouvido, o gosto, o olfacto!

Pede-me o corpo inteiro esforços na friagem
De tão lavada e igual temperatura!
Os ares, o caminho, a luz reagem;
Cheira-me a fogo, a sílex, a ferragem;
Sabe-me a campo, a lenha, a agricultura.

Mal encarado e negro, um pára enquanto eu passo;
Dois assobiam, altas as marretas
Possantes, grossas, temperadas de aço;
E um gordo, o mestre, com um ar ralaço
E manso, tira o nível das valetas.

Homens de carga! Assim as bestas vão curvadas!
Que vida tão custosa! Que diabo!
E os cavadores pousam as enxadas,
E cospem nas calosas mãos gretadas,
Para que não lhes escorregue o cabo.

Povo! No pano cru rasgado das camisas
Uma bandeira penso que transluz!
Com ela sofres, bebes, agonizas;
Listrões de vinho lançam-lhe divisas,
E os suspensórios traçam-lhe uma cruz!

De escuro, bruscamente, ao cimo da barroca,
Surge um perfil direito que se aguça;
E ar matinal de quem saiu da toca,
Uma figura fina, desemboca,
Toda abafada num casaco à russa.

Donde ela vem! A actriz que tanto cumprimento
E a quem, à noite na plateia, atraio
Os olhos lisos como polimento!
Com seu rostinho estreito, friorento,
Caminha agora para o seu ensaio.

E aos outros eu admiro os dorsos, os costados
Como lajões. Os bons trabalhadores!
Os filhos das lezírias, dos montados:
Os das planícies, altos, aprumados;
Os das montanhas, baixos, trepadores!

Mas fina de feições, o queixo hostil, distinto,
Furtiva a tiritar em suas peles,
Espanta-me a actrizita que hoje pinto,
Neste Dezembro enérgico, sucinto,
E nestes sítios suburbanos, reles!

Como animais comuns, que uma picada esquente,
Eles, bovinos, másculos, ossudos,
Encaram-na sanguínea, brutamente:
E ela vacila, hesita, impaciente
Sobre as botinhas de tacões agudos.

Porém, desempenhando o seu papel na peça,
Sem que inda o público a passagem abra,
O demonico arrisca-se, atravessa
Covas, entulhos, lamaçais, depressa,
Com seus pezinhos rápidos, de cabra!

Lisboa, Inverno de 1878
Coimbra, Revista de Coimbra, n.0 1, 1879, republicada
em Correspondência de Coimbra, 17 de Junho de 1879

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Notas:



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ALEXANDRE O'NEILL: UMA LISTA DE POEMAS URGENTES E NECESSÁRIOS

Num artigo publicado em 76, Alexandre O'Neill, distinguindo entre «poemas que não podiam deixar de ter sido feitos» e «poemas que podiam tê-lo sido ou não», apresenta esta lista de uns quantos que considera revestidos de «absoluta necessidade».

«Recordação da noite de 4 de Agosto», de Victor Hugo
«Buffalo Rill», de e. e. cummings
«Animal Olhar», de Ramos Rosa
«Cemitério Marítimo», de Valéry
«Romance da Guarda Civil», de Lorca
«Liberdade», de Paul Éluard
«Mataram a Tuna», de Manuel da Fonseca
«Primeira Elegia de Duíno», de Rilke
«Cristalizações», de Cesário
«Niilismo», de Cecco Angiolieri
«O Cão sem Plumas», de Melo Neto
«terni i treni», de Carlo Relloli
«Snow is...», de Eugen Gomringer
«Os Gaúchos», de Jorge Luis Borges
Quase todo o Rimbaud
Boa parte do Verlaine
«Olinda e Alzira» de Bocage
«Os Doze», de Alexandre Block
«A Carroça Vermelha», de W. C. Williams
«O sol é grande...», de Sá de Miranda
«A Flauta de Vértebras», de Maiakovski
«Um Fantasma de Nuvens», de Apollinaire
«Dora Markus«, de Montale
«Lamentações para um Órgão da Nova Barbaria», de Aragon
«De Infância», de Géo Norge
«Balada dos Enforcados», de Villon
«A uma caveira», de Lope de Vega
«A Caça ao Snark», de Lewis Carroll
«O Pastor Morto», de Nemésio
«As Elegias de Bierville», de Carlos Riba
«Na Estrada de San Romano», de Breton
«A Maçã», de Manuel Bandeira
«Canção de Amor de Alfred Prufrock», de Eliot
«Estava eu na ermida de S. Simeão», de Mendinho
«Canto sobre mim próprio», de Whitman
«Na Europa», de Casais Monteiro
«Sacos e Caixas», de Sandburg
«Eu não sou ninguém! Tu quem és?», de Emily Dickinson
«Assassinato de Simonetta Vespucci», de Sofia
«Elegia do Amor», de Teixeira de Pascoaes
«O Bailador de Fandango», de Pedro Homem de Mello
«Proto-poema da Serra de Arga», de António Pedro
«ai-curtos», de António Reis
«A mulher de Luto», de Gomes Leal
«Numa estação de Metro», de Pound

sábado, 4 de setembro de 2010

JOÃO TORDO: O BOM INVERNO


As comparações podem parecer espúrias, mas ao falar de José Luís Peixoto, Gonçalo M. Tavares, valter hugo mãe ou João Tordo, elas impõem-se, porque estamos perante autores portugueses jovens, de uma mesma geração, apesar da diferença de anos que possa separá-los uns dos outros, autores que compõem o rosto, tal como tem vindo a ser desenhado nos últimos dez anos, da nova literatura portuguesa.

Dos referidos, João Tordo foi, salvo erro, o que mais recentemente começou a revelar-se: é também, de entre todos eles, o mais preocupado com a história como história. Enquanto que muito do que os seus pares escreveram radica num certo experimentalismo formal, ou no puro prazer poético da palavra, os romances de Tordo são, num sentido que não visa diminuí-los, autênticos guiões: há uma técnica dominada, a que, todavia, não falta alma. Trata-se de uma técnica cinematográfica, que se preocupa em contar a história de modo a manter o leitor sempre preso de cada passo da narrativa, mais do que em nos deleitar com o sabor das palavras ou a profundidade do pensamento. A linguagem é um instrumento. Os seus romances usam-na; não vivem dela, nem nela, nem para ela.

Há dois traços importantes, comuns aos livros que conheço de Tordo: um, é a cartografia de uma certa forma de desenraizamento. Os protagonistas estão longe do seu país natal, e essa errância torna-se um elemento fundamental para a atmosfera de desintegração, de inadaptação, que constantemente se convoca; a outra, tem que ver com a sensação de «estranheza», que atrai e repele a um tempo, e que Freud tão bem capturou. Tais dois traços estão, aliás, intimamente ligados: na viagem, no desenraizamento, se descobre não simplesmente um novo mundo de postal turístico, mas um mundo sinistro, de situações aterradoras, velados perigos, nunca inteiramente esclarecidos, e malevolências que se vão aproximando sorrateiramente. (Aquilo que leva à qualificação, talvez ligeira, dos romances de Tordo como góticos...)

Estou a gostar muito de ler O Bom Inverno. O narrador é uma personagem inenarrável: um escritor hipocondríaco, que se apresenta como uma síntese do fracasso em todos os departamentos da sua vida, da profissional à amorosa. Sonha com o livro que o vingará do mundo, mas não o escreve. Sente a perna destroçada; lamenta-se, recorre a um coxear e a uma bengala; fecha-se em si, fecha-se em sua casa, e é a partir deste fechamento, rompendo de súbito com ele, que, quando menos se espera, parte para sucessivas viagens, ao longo das quais acaba unindo-se a um grupo estranho, que o leva, por sua vez, a fazer-se convidado de alguém que se rodeia de um grupo ainda mais estranho: espécie de conjugação astral, instável e perversa, de forças e de fraquezas que nada de bom auguram.

Actua, como óleo do motor de toda a evolução, um subtil toque policial; um cheirinho, somente, que alicia o leitor a partir de um crime que nos é descrito desde o início. O romance regressa, pois, à sua pré-história, de forma a reconstituir os passos que levaram a esse homicídio de que tivéramos previamente conhecimento: o crime, ele próprio, estranho - «Pusemos o homem dentro do cesto do balão e deixámo-lo desaparecer no céu pálido do Lácio» -, que tem como vítima uma personagem poderosa, excêntrica, misteriosa, o dono da casa, um produtor de cinema, Don Metzger.

João Tordo definiu-se: um estilo, um tom, uma lógica, um pathos. Uma certa forma, realista e dramática, de enunciar os diálogos, que lhe tem sido reconhecida pela crítica. Um universo com veios sórdidos e sinistros, uma descida à psicologia das manias e do fracasso. Apropria-se de si: João Tordo vem-se tornando, cada vez mais, João Tordo. Que mais pedir a um autor?

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

CHARLES DICKENS: OS CADERNOS DE PICKWICK


Ouvimos falar de Charles Dickens, e em que pensamos? Sobretudo, julgo, num autor do século XIX, consciente e condoído da miséria e da marginalidade que corroíam os bairros londrinos, ou da má sorte reservada aos mal nascidos: garotos esfomeados, sujos, rotos e sem futuro, entre orfanatos cruéis e cárceres onde cedo acabariam.

Alguns dos seus livros, densos, dolorosos, como Oliver Twist e David Copperfield, que todos nós lemos na juventude, ou, alternativamente, vimos em infindáveis tragédias com as quais o cinema nos fez chorar, constituíam, segundo Marx, um bom exemplo do que o romance deveria oferecer: uma história realista, capaz de mostrar e denunciar o mundo cru que a sociedade de classes engendra.

Mesmo nas tragédias dickenianas, é verdade, encontramos personagens divertidas. E inegáveis momentos cómicos. Todavia, insuficientes para que, no retrato que imaginássemos de Charles Dickens, nos passasse pela cabeça traçar um humorista.

Ora o livro com que Ricardo Araújo Pereira abre a sua série de clássicos do humor é precisamente uma obra de Charles Dickens, os cadernos de Mr. Pickwick, de seu nome completo Os Cadernos Póstumos do Clube Pickwick.

Trata-se de um conjunto de fascículos que Dickens foi publicando, entre 1836 e 1837: e o espantoso Ricardo Araújo Pereira, num muitíssimo bem documentado prefácio, que é um motivo acrescido para que se leia a obra em causa, dá conta de como esta foi sendo recebida, amada, e se tornaria inspiradora - por exemplo para Tolstoi, Dostoievski ou Joyce, ou, em Portugal, sem dúvida para Garrett, Queirós, Pessoa.

Os diálogos, principalmente, funcionam como extraordinários dispositivos de riso. Os equívocos para que as personagens inocentemente se deixam arrastar nas suas conversas, a malícia de umas, a esperteza de outras, a candura de várias, proporcionam momentos de puro nonsense. Por outro lado, Dickens sempre foi um autor atento a diferentes estilos e modos de pronúncia: e se é verdade que se torna difícil captá-los na escrita - e mais difícil, ainda, certamente, traduzi-los - o resultado, para além do efeito cómico conseguido, pode ser verdadeiramente revolucionário do ponto de vista formal. Preste-se atenção a Sam Weller com o seu inglês local, cheio de consoantes suprimidas ou ligações impossíveis. Ricardo Araújo Pereira encontra, citando Wyndham Lewis, em algumas dessas falas (particularmente nas de Alfred Jingle, entrecortadas, telegráficas, perfeitas), uma possível paternidade do "monólogo interior de Leopold Bloom", no Ulisses, de Joyce.

Pergunto-me, muitas vezes, o que é um livro de humor. Ou como diabo recomendá-lo, se é verdade que nem todos nos rimos das mesmas coisas. Considero 3 Homens num Bote divertidíssimo, mas sei de quem o abandonasse a meio, com grande tédio. Lisboa em Camisa faz-me sempre rir, mas o volume velho e poeirento, que emprestei a uma amiga, trouxe-lhe poucas gargalhadas e muita asma. Do meu ponto de vista, Pickwick vale a pena. Sei que fez rir muita gente, ao longo do tempo; sei que aconteceu a alguém rebentar uma veia, de tanto rir com ele; sei que foi apreciado pelos melhores escritores, qualquer que fosse o género a que se viriam a dedicar. É um conjunto de garantias? Faltam sempre garantias, no que toca ao humor. No vosso lugar, arriscaria.

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

ROSS MACDONALD: O INIMIGO INSTANTÂNEO

Imaginem um inventor de jogos. Um homem ou uma mulher cuja tarefa fosse a de criar algo como o xadrez. Ou as damas. Ou o Poker. Ou o cubo mágico. Independentemente da sua dificuldade, um jogo tem regras internas, um objectivo que se define simultaneamente como um desafio, oferece um número razoável, mas finito, de possibilidades e, no fim, terá testado a inteligência e a criatividade dos jogadores.

Nenhum livro pode ser visto tanto como um jogo, quanto um romance policial. E é por isso mesmo que, desse ponto de vista, o seu autor tem algo de um inventor de jogos. Alguns, naturalmente, escreveram livros ao nível do jogo do galo, nada mais. Mas Ross Macdonald apresentou, em matéria de policial, o xadrez. Nada menos.

Escrevi, em outro post, que os seus textos têm, também, uma grande consistência literária. Podem duvidar. Mas apraz-me mostrar um par de exemplos. O narrador, um detective profissional, descreve o cliente, que acaba de conhecer: " Keith Sebastian saiu da casa em mangas de camisa. Era um um homem elegante, nos seus quarenta e tal, com espesso e encaracolado cabelo castanho, grisalho nos lados. Estava ainda por barbear, e o seu crescer de barba parecia sujidade fibrosa, que tivesse sido esfregada no rosto". Ou, mais tarde, a propósito do mesmo Sebastian, com quem fora falar, no local em que este trabalhava, e onde uma secretária lhe disse que o ouvira chorar: "Eu gostava mais de Sebastian desde que soubera que ele tinha lágrimas dentro da sua cabeça encaracolada".

Um último pedaço:

"Eu sei isso", disse ela, impacientemente. "Vai tentar?" Pressionou ambas as mãos sobre o seu peito, e depois ofereceu-mas, vazias. A sua emoção era, ao mesmo tempo, teatral e real".

Da mesma forma, descrevendo, não só as personagens, mas o interior das casas, ou as vilas, ou as cidades, Ross Macdonald consegue a proeza de fazer com que as vejamos e, mais do que isso, com que gostemos de as ver: com que, lembrava ainda ontem o meu primo, nos apetecesse estar mesmo lá.

Nada disto constitui o conjunto dos pormenores ignoráveis do jogo: tais pormenores conferem-lhe, pelo contrário, uma credibilidade e uma espessura sem as quais teria menos interesse jogá-lo.

Mas o jogo, em si - e cada novo romance é um novo, diferente e completo, com um mecanismo de relógio no seu interior, subtil e engenhoso - depende de uma conjugação perfeita dos elementos. O leitor é enganado. Deve pensar por si, para chegar a uma solução, e faz parte do jogo que o conduzam para a solução errada. Ou não se deixa enganar. Ou, o que frequentemente acontece, é alguém que desconfia; está sempre com um pé atrás, e luta para que o não enganem: ora quando mesmo este tipo de leitor, de segundo grau, percebe, no fim, que o detective - e o autor - antecipou os seus juízos menos óbvios, e os usou, honestamente, para vencer, é porque o detective - e o autor -, sem passes de magia, sem vozes divinas, é realmente do melhor.

Ross Macdonald é, realmente, do melhor. Talvez, até, um pouco mais: no policial, ele é o melhor.

ROMPENDO, POR UM INSTANTE, ESTE VAZIO

De férias nos EUA, em casa daquele meu primo, leitor inveterado, sobre quem tanto já aqui falei, e com pouco tempo para cultivar blogues, aproveito, contudo, para uma rápida visita a este, de que tenho saudades.

O que venho lendo é, por um lado, alguma coisa que trouxe comigo (termino a história portátil do universo, iniciei os cadernos de Mr. Pickwick, de Charles Dickens, impagável, com efeito) e, por outro lado, o que a estante de meu primo, frondosa, atraente e perigosa como uma floresta virgem, revela aos meus olhos de pequeno explorador: um conjunto de textos de Nietzsche que nunca havia sido traduzido, acerca dos pré-platónicos (com este título, precisamente: Os Filósofos Pré-platónicos, no original, ao invés do emprego do esperável termo "pré-socráticos": isto, posto que, para Nietzsche, o verdadeiro turning point na história da filosofia está longe de se dar com Sócrates, que seria, quando muito, digamos assim, e passe o paradoxo, o último dos pré-socráticos...); ou um livro de Ross Macdonald, que considero o melhor dos autores do género policial. O melhor, pondero bem a palavra. E, sem dúvida, o mais literário de todos.

Falarei, no meu regresso, de algumas dessas leituras. Leitores meus, até ao meu regresso.

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

TOLSTOI: ANA KARENINA


Costumam ser referidos certos autores norte-americanos como exemplo da mestria na construção de diálogos convincentes.
Sem querer contrariar, peço, no entanto, que me sigam por um instante, enquanto vos mostro algo:

« - Já está aqui há muito tempo? - perguntou Kitty, estendendo-lhe a mão. - Obrigada - acrescentou, quando Levine apanhou o lenço que lhe caíra do regaço.
« - Quê? Não, há pouco. Cheguei ontem, quer dizer, hoje... - respondeu ele, que não percebera logo a pergunta, em virtude da emoção que o assaltava. - Pensava em ir a sua casa - prosseguiu; mas, ao lembrar-se do motivo porque procurara Kitty, perturbou-se, enrubescendo. - Não sabia que patinava. Patina admiravelmente.»

Está aqui tudo, e de que maneira; e com tamanha simplicidade: os pormenores aparentemente irrelevantes que, no entanto, não nos parece que estejam a mais (Kitty faz-lhe uma pergunta e, antes de ouvir a resposta, agradece-lhe o facto de lhe ter devolvido o lenço que ela deixara cair), os enganos (Levine não percebeu a questão, dá uma informação errada, corrige-a imediatamente a seguir), as súbitas associações (ao responder lembra-se do que o traz ali, e cora), as bruscas mudanças de assunto, perante um caminho embaraçoso da conversa. Ou seja, as palavras trocadas pelos dois, entre actos falhados e gestos espontâneos, revelam mais do que qualquer explicação suplementar. É encantador.

Estou perante, como terão reconhecido, Ana Karenina. No episódio que vim de citar, todo o comportamento de Kitty é ambíguo. Levine, completamente apaixonado, inseguro, incapaz de se lhe declarar, vai deixando que aflorem pequenos sinais, num flirt lindíssimo, de uma ingenuidade comovente. E as reacções da rapariga são contraditórias, semeando a confusão na mente do jovem. Ora parece simpatizar com a sua ousadia, que nunca verdadeiramente o é, ora se mostra fria, imersa nos seus pensamentos, «como se o sol se escondesse atrás das nuvens», com uma ruga desenhada na testa.

Este monumental romance tem início com um aforismo inesquecível: «Todas as famílias felizes se parecem; as infelizes não». E, a partir daqui, introduz-nos no seio de uma família infeliz, no tempo em que a dona de casa descobrira a infidelidade de seu marido, que a traíra com a preceptora francesa das crianças. E, acreditem, é impressionante a forma como Tolstoi nos apresenta Oblonski, o marido, na sua oscilação entre a rotina, que aspira a manter, e esta crise familiar que faz estalar todas as peças de qualquer possível rotina.

Todos os gestos de Oblonski, no modo como apanha o roupão sem se levantar, ou toma a taça de café, ou se limpa de migalhas, compõem um simulacro de quotidiano costumeiro: uma "normalidade" constituída de pequenos prazeres, falta de ideias próprias, bonomia e simpatia no trato com os subalternos. (Os seus máximos desígnios limitam-se, praticamente, a isso). Como é que, entrincheirado num mundo tão suave, frágil e pouco combativo, se pode enfrentar a mudança e a infelicidade, munidas de semblantes trágicos, lágrimas, gritos, palavras imperdoáveis?

Tolstoi não pretende inovar, mas retratar. Tal como Dostoievski, Flaubert ou Eça de Queirós - e esta associação nada tem de gratuito -, o que ele faz é expor a sociedade de um certo tempo, com as suas formas culturais e mentais, usando personagens cuja singularidade as torna tão concretas como os nossos vizinhos ou os nossos familiares. Ana Karenina não representa "a" mulher, nem sequer "a mulher russa", ou simplesmente uma heroína trágica, ou romântica, ou o que entendam: é Ana Karenina; o seu sentimento e o seu sofrimento não são esquemas nem símbolos. Estão vivos. São reais. Os dela e os de todas as personagens que aqui moram, porque não se conhecem a si mesmas, nem sabem explicar-se em face de si próprias; vão mudando imperceptivelmente: não falo de revoluções decisivas, mas de ambíguas transformações interiores. (Mesmo a revolução interior e exterior de Ana pouco mais é do que uma soma de de incertas e mínimas mutações, até ao momento em que se convence que o seu destino é a irreversível paixão...). Tudo são minúsculos ângulos, pequenas incertezas, metamorfoses subliminares. Kitty, por exemplo, que julga amar, influenciada por uma certa visão romântica do amor, realmente não sabe se ama, ou, sequer, quem ama. Leia-se o trecho em que, num baile, sob o encanto simultâneo de Ana Karenina, que só há pouco conheceu, e de Vronski, por quem se apaixonou, ela se apercebe da sedução a que ambos se entregam, mal crendo nos seus olhos e não querendo crer neles: e como Kitty luta entre o encantamento, que não pode desaparecer, antes se reforça perante a beleza do par, o ciúme, a humilhação, a auto-piedade, o arrependimento, o desejo de não acreditar no que vê.

São esta mobilidade, este auto-engano das personagens, esta sobreposição de sensações e sentimentos, que fazem da subjectividade emocional de cada uma delas algo da ordem do real. Não há indivíduos monolíticos nem estados monocórdicos. Ana Karenina é um anjo de bondade e um demónio apaixonado. Não podemos excluir qualquer dos termos. Nem sequer são "realistas": são reais.

terça-feira, 10 de agosto de 2010

JOHN MILTON: PARAÍSO PERDIDO




Toda a teologia que tem a sua génese no judaísmo e no cristianismo está minada por uma pergunta irrespondível. Se Deus é sumamente bom, omnisciente e todo-poderoso, de onde surge o mal? Só se admite que Deus consinta no mal, ou porque Ele não é bom, ou porque o não previu, ou porque nada pode contra ele.
A ideia de um ser caído, Satanás, não vem ajudar.
Deus não poderia havê-lo antes suprimido? Ou forçado a render-se? Ou gostamos de pensar que essa relação obsessiva faz parte do grandioso plano divino, de facto como se, na ausência de um verdadeiro inimigo, os actos do Senhor não brilhassem tanto?

Em todo o caso, gosto de reler o extraordinário poema de Milton, Paraíso Perdido. Sou franco: «reler» é força de expressão; na verdade, é principalmente aos dois primeiros livros desta obra, cuja segunda edição (de 1674) contém doze, que retorno frequentemente. Mas acho inexplicável que um autor do século XVII tenha sido capaz de, tão corajosamente, sondar o mistério da personalidade diabólica.

Não se pode propriamente afirmar que Milton seja o advogado de Satanás. Escreve como se ele mesmo, o autor, não tivesse de tomar partido. É um repórter que assiste, imperturbável, aos difíceis momentos da Queda, da preparação para a longa guerra entre o Bem e o Mal e, como parte desta, a tentação de Adão e Eva e sua expulsão do paraíso. E deixa que, à vez, cada um dos eternos adversários, Deus e o Diabo, tome a voz, exponha as suas razões, entusiasme os seus com os argumentos que lhe justificam a posição. Ou seja: o extraordinário é, aqui, o facto de que Satanás possa apresentar ao leitor a sua perspectiva: amarga, rebelde, inconformada, triste, raivosa, de uma vertiginosa liberdade, que surge resplandecendo em todo o seu valor.

Porque, nas suas palavras, a vitória não é possível: mas quando um acto não aspira à vitória, então é simplesmente vingança. E a origem do mal residiria, pois, nesse desmedido orgulho de Satanás, que mesmo não podendo ganhar, se recusa a desistir, porque pensa que é melhor reinar no inferno do que servir no céu.

Detenhamo-nos nesta concepção do demoníaco, que não justifica o mal procurando racionalizá-lo, ou seja, procurando compreender-lhe as razões (como o faz a psicologia contemporânea), mas, em vez disso, o toma como uma escolha livre e, mais do que isso, como a única escolha em que a liberdade se pode cumprir. Os anjos caídos sabem que, exceptuando a sua ingrata saída, só lhes restaria a escravidão, ou seja, servir a Deus.

E agrada-me isto num poeta inglês de há quatro séculos A capacidade de olhar o outro, seu contrário, sem o humilhar nem diminuir. Não lhe dando razão (pois dar-lhe razão seria uma derradeira afronta, uma nova forma de paternalismo); antes, dizendo: Tu és isto. Vejo o que tu és. Não posso sequer dizer que te respeite. (Raramente a enunciação do respeito que se tem por quem nos contradiz não é um exercício de hipocrisia). Mas percebo que, se não fosses o que és, já não serias tu. Serias um servo.

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

A RETÓRICA DE JOÃO PEREIRA COUTINHO

Em certos mestres da retórica, que são autênticos poetas da argumentação, é um pormenor irrelevante que o leitor se deixe convencer e, no fim, esteja de acordo com o conteúdo, ou não. Lemo-los imbuídos do prazer da sua arte, do seu jogo com as razões e com as palavras, ainda que discordemos radicalmente de todas as suas teses, uma por uma. É o caso, em Portugal, de João Pereira Coutinho. Inteligente, culta, informada, pensando de forma provocatória (mas, de facto, "pensando"), insensível à moda ou ao "politicamente correcto", excêntrica e snobe, muitas vezes injusta, muitas vezes justa, a sua prosa é sempre um deleite. Poderá não ter frequentemente razão. (Se é que isso pode ser garantido, a não ser como artigo de fé). Mas não ter razão numa escrita assim bela e assim inteligente é, seguramente, tão estimulante, tão formativo - e quase tão bom - como ter carradas de razão.

domingo, 8 de agosto de 2010

UMA CITAÇÃO QUE VALE A PENA


«Quando comparamos a nossa ridícula existência com as existências literárias que fomos acumulando na estante, tudo se torna incomparavelmente mais insignificante. Mais triste. Mais inútil. Porque a grande literatura não nos torna maiores. Torna-nos menores. E torna tudo mais pequeno. Podemos amar a donzela da praxe com devoção e zelo. Vocês conhecem: a Teresa, bonitinha, com apartamento em Telheiras e um Cinquecentto em segunda mão. Mas, honestamente, algum dia amaremos alguém como Dante amou Beatrice? Como o Quixote amou Dulcineia? Como Bendrix amou Sarah sob um céu carregado de demência e morte? Nada na vida é como nos livros. Não chove como na Londres de Larkin. A comida não sabe tão bem como nos romances de Hemingway. Os melhores martinis que tomei foram na prosa de Fitzgerald. Nos meses de verão, Veneza fede - mas nunca na literatura de Mann, Calvino ou Brodsky».

João Pereira Coutinho, Vida Independente

sábado, 7 de agosto de 2010

FRANÇOISE MALLET-JORIS: A CASA DE PAPEL

Estou, como indicam alguns dos meus pretéritos posts, em fase de me apetecer escrever sobre partilha de livros com o meu filho; talvez por isso, veio-me subitamente à ideia algo que eu li quando tinha onze, doze anos, treze anos. Estava em Lourenço Marques: Moçambique. Aí vivia. Lembro-me de que meu irmão, que estudava na "metrópole", ou seja, em Lisboa, se encontrava connosco, certamente de férias. E no meio dessas memórias aprazíveis, aparece-me, num assombramento agradável, a capa de um livro que, por essa altura, andávamos todos a ler. A minha mãe, obviamente, que o recebera de uma amiga; o meu irmão, que se ria nas suas gargalhadas soltas a cada página; e eu, curioso do que poderia ser tão divertido naquela obra. Suponho que foi o livro da moda: associo-o a uma época em que todos sabiam de que se falava, quando sa falava de A Casa de Papel (La Maison de Papier), de Françoise Mallet-Joris.

E, no entanto, não tinha a intenção de ser cómico: consistia simplesmente na descrição da vida, em família, de um grupo constituído pela mãe (a narradora), um marido vagamente presente, pintor, um filho de onze anos, se me lembro com acerto, e uma menina mais nova. A reconstituição dos diálogos com os miúdos, ou das guerras entre estes, o teor filosófico das teses das crianças mas, sobretudo, uma incerteza pedagógica que acompanha as relações das gerações: a necessidade de impor e aceitar um certo número de regras (hoje diríamos: "politicamente correctas"), por um lado, e um inevitável e delicioso desregramento, por outro, fazem do texto a dádiva de uma experiência sensível, extremamente flexível, com falhas óbvias e recorrentes que, em última análise, acabam sendo resgatadas pelo amor e pelo humor. Uma casa de papel é um pouco de tudo isto. Parece estranha, vista de fora: mas é um lugar que, habitado, não se trocaria, porventura, por nenhum outro.

Ocorre-me, de repente, um episódio que fazia o meu irmão rir perdidamente. Cito de memória: a menina fazia, frequentemente, a lista dos desagravos que sofrera ao longo do dia. Que o irmão lhe ralhara, que uma amiga não lhe emprestara a boneca, que o pai fizera troça, etc. etc. etc. Um dia, conta a narradora, levada por um excesso de imaginação, tinha acrescentado: «E o gato mandou-me à merda!»

A ideia de construir-se - e viver-se - numa casa de papel, e de a expor aos leitores, acaba apresentando, subjacente e despretensiosamente, toda uma teoria pedagógica. Muito anos sessenta e setenta. Pejada de erros (e, daí, talvez não: quem tem realmente as respostas definitivas em matéria de educação? Reformulo: «pejada de erros» do ponto de vista do que entende uma pedagogia conservadora) que, insisto, o amor, uma alegria perpétua e a capacidade de rir de si mesmos nunca deixa que se tornem dramáticos.

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

CHRISTOPHER POTTER: VOCÊ ESTÁ AQUI: UMA HISTÓRIA PORTÁTIL DO UNIVERSO



Sou um moderado compulsivo, se é que a expressão faz o menor sentido, de livros de divulgação científica. Como a área de ciências constituiu sempre, para mim, um bico-de-obra e, enquanto aluno, tudo fiz para escapulir à perseguição das químicas e das matemáticas, mais tarde senti a nostalgia dessas disciplinas que não aproveitara, desses temas de que não usufruíra. E os livros de Carl Sagan ou de Hubert Reeves, através das suas explicações simples [que eu acreditava não serem porém simplistas] faziam-me transpor, com um evidente prazer, e algum orgulho, o limiar de um mundo de teorias que procuravam abarcar o universo inteiro.

Um problema dos divulgadores científicos, todavia, é que, em geral, mesmo sendo homens de uma cultura abrangente, mostram certa dificuldade em não apresentar a sua ciência como uma visão à parte, se não de costas voltadas, para outras formas de sentido. Está subjacente a antiga separação entre o científico e o literário, entre as duas aparentemente irreconciliáveis "culturas", que traduzem, de algum modo, operações distintas de hemisférios distintos.

E é nisso que Você Está Aqui, de Christopher Potter, se revela um livro de divulgação científica incomum. Afinal, o que entusiasma o autor é a possibilidade da ligação entre as duas fontes - esforço esse que, aliás, ao longo dos seus estudos, sempre foi incompreendido e desprezado. A lembrança, em particular, de uma curta divagação de um professor, na altura em que voltara à universidade para realizar um curso de história e filosofia da ciência, fornece-nos a chave secreta deste livro:

«A minha mais forte recordação desse ano foi a de uma observação feita pelo chefe de departamento, de que me lembro em parte por ele a ter desmentido de imediato e, em parte, por a ter associado à minha contínua sensação de me encontrar no exterior do mundo que pretendia habitar. Ele interrogou-se sobre o que seria ensinar piano sabendo que as duas únicas variáveis físicas são a velocidade e a força com que as teclas são percutidas. Fazendo uma breve pausa, interrogou-se sobre se, na realidade, não haveria apenas uma variável - apenas a força - dado que a acção do piano é fixa. O meu coração saltou com interesse. Aqui estava uma possível ponte sobre o rio. "Mas estamos a desviar-nos para a estética", concluiu o professor, e mudou de assunto».

Pois bem: Você Está Aqui, subintitulado Uma História Portátil do Universo, procura e consegue ser essa «ponte sobre o rio».

Christopher Potter escolhe, como início, a perspectiva egocentrista de cada um de nós. Parece-me um achado: a partir daí, alarga, salta, rasga, ao mesmo tempo que, paradoxalmente, reduz - ou seja, "reduz" cada indivíduo humano, cada eu, a um ponto no incomensurável, em busca daquilo que os cientistas fundamentalmente buscam: uma perspectiva extra-terrestre, no sentido em que se concebe uma explicação que não seja auto-centrada, mas possa valer tanto na terra como de qualquer outro ponto de vista no universo. Fá-lo convocando os antigos e os modernos filósofos, poetas e cientistas, numa abundância de informação que, se é sempre clara, parece muitas vezes pecar por excessiva. Não o é, contudo: de que outra maneira se poderia escrever uma história "portátil" do universo?

Necessário é, pois, que este livro, que se lê muito rapidamente, se releia e vá relendo, depois, lentamente. Necessário é que a ele voltemos muitas vezes, ou tão-só na medida do nosso interesse, ou do que fomos percebendo numa leitura fácil, mas sem o haver compreendido em todas as suas implicações.

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

LARS KEPLER: O HIPNOTISTA

Alguma coisa, obviamente, se procura na chamada literatura de género. Não digo que uma obra de ficção científica, por exemplo, não possa ser literariamente excepcional: Fahrenheit 451, para falar de uma que me é particularmente cara, de Ray Bradbury, é-o de todos os pontos de vista, com uma escrita suculenta, exigente, e uma trama que tanto interessou a François Truffaut, que a filmou. Ou os livros de Ursula Le Guin. Igualmente, sabemos de romances policiais que são obras-primas de psicologia, ou notáveis como reconstituições de época, ou por histórias bem urdidas nos pormenores que vão revelando pistas sem as oferecer. (Ruth Rendell basta). Mas, insisto, não costuma ser nenhum desses aspectos literários o que predomina na escolha de uma obra de género.

Pode consumir-se, precisamente, como o repouso em relação a livros ditos mais "sérios". Pode consumir-se como um determinado vício: o teste das nossas próprias habilidades de raciocínio, na secreta esperança de estarmos em competição com o detective; ou pelo impacto da fantasia, que nos transporta para universos alternativos. Em resumo, há um "quê" concreto que nos acena do fundo de um romance de género - e que não é, certamente, a poesia das palavras ou a profundidade da reflexão.

Posto isto, e sem preconceitos, sou um grande admirador de praticamente todos os géneros de literatura de género.
No que respeita aos policiais, tenho estado a interessar-me pelos autores nórdicos que, por alguma razão, se têm tornado grandes mestres do suspense e do mistério.

Caiu-me nas garras, agora, O Hipnotista, de Lars Kepler.

Começa porque não existe nenhum Lars Kepler: o pseudónimo encobre um casal, Alexander Ahndoril e Alexandra Coelho Ahndoril, o que não vem senão na linha de uma feliz tradição nos policiais, que é o de romances escritos a meias (a começar logo pelo caso do magnífico Inspector Ellery Queen).
Ora O Hipnotista narra uma dessas histórias em que, nos interstícios palpitantes do drama, vamos conhecendo a pessoa de um investigador, neste caso Erik Maria Bark, com um passado dúbio, uma história pessoal credível, uma família em crise; ou seja: o que acessoriamente nos interessa neste romance é a verosimilhança de uma personagem em face dos problemas éticos que ressurgem, do seu passado, no embate com um novo caso, bem como a descrição, pormenorizada e dura, de uma Suécia que, há uns anos atrás, ainda nos aparecia como um paraíso da social-democracia, um exemplo feliz, e hoje observamos que se trata de uma sociedade imperfeitíssima, de onde não desapareceram os crimes, nem os bêbedos ou as morosidades da Justiça.

Diria que, como thriller, obedece a uma técnica saudavelmente enervante. Onde, ao princípio, notava uma excessiva vontade de descrever e explicar (desde em que consiste a "hipnotização" até, por exemplo, o que é uma "autópsia" ou a equivocidade semântica deste termo) cedo vejo um texto que se despe de tudo o que não é imediatamente fundamental: e numa linguagem precisa, narrando num presente que torna as cenas visíveis, como se a pensar numa futura adaptação cinematográfica, com capítulos curtos, que terminam em pontos estudadamente críticos, obrigando-nos a saltar de uma vez para o capítulo seguinte, este romance tem todos os ingredientes para uma leitura precipitada e nervosa, que caracteriza os melhores policiais.

560 páginas que se devoram em uma ou duas noites: estão a ver o género?

terça-feira, 3 de agosto de 2010

ANTOINE DE SAINT-EXUPÉRY: O PRINCIPEZINHO

Quando eu era muito jovem, li o primeiro excerto de O Principezinho num livro de leitura escolar; seria o diálogo da Raposa, ou parte do diálogo da Raposa. Toda aquela conversa me emocionou. Mais tarde, fui lendo outros pedaços da obra, suponho que sempre em compêndios da escola. Só muito depois, não sei precisar quando, tive oportunidade de conhecer a história na íntegra: e aquele magnífico texto de um adulto que escreve, no fundo, para adultos, tentando fazer renascer a visão infantil que os adultos tendem a perder, cativou-me. Tudo, ali, eram descobertas, essas preciosas descobertas que eu fazia compreendendo as frases inesquecíveis: que o essencial é invisível para os olhos, que devemos cativar cerimoniosamente, mas, depois, sentirmo-nos responsáveis por aqueles que cativamos, etc. etc.

Mais tarde, já como professor, descobria O Principezinho em toda a parte. Era um pouco de mais. Invadia os manuais das mais diversas disciplinas, contaminava o ensino em todos os ângulos, surgia nos menores exemplos, a propósito de tudo. As frases brilhantes tornaram-se lugares comuns aos meus ouvidos. As imagens perderam brilho. Os diálogos já só penosamente me visitavam. Aprendi, então, a ver O Principezinho como uma monumental pieguice, o mais datado dos livros e, evidentemente, um dos mais pretensiosos. Odiei o diálogo da Raposa. Pu-lo de parte. Na minha opinião de então, para sempre.

Só regressei a ele porque o meu filho - uma vez mais, o meu filho - precisou de o ler para Português; falara-me nisso, mas tinha-me esquecido; não lho comprei: mea culpa; esqueceu-se, também ele, e o tempo passou. Até que, na véspera da aula em que teria de se apresentar com a leitura feita, à noite, se lembrou. Tínhamos o livro em casa? Parecia-me que sim. Não tínhamos o livro em casa, afinal. Buscámo-lo na internet e lemo-lo os dois, em voz alta, ora um ora outro, rendendo-nos mutuamente.

E o texto que eu julgara esquecido, ou vencido pelo tempo e pela maturidade adquirida, reapareceu inteiramente, em toda a sua inocência e pureza. Era maravilhoso: uma história muito bela sobre um menino autista - ou um garoto no limiar de qualquer síndrome de auto-centramento, eis como, já "adulto", explicaria a sua atitude -, que só responde ao que quer e faz, insistentemente, a mesma pergunta, uma e outra vezes, até que lhe dêem a resposta que o satisfaça.

Mas, sobretudo, o diálogo da Raposa veio ao de cima em todo o seu esplendor. Ouvi-o na voz do meu filho, ouvi-lhe, a seguir, a despedida, e chorei. Estava tudo ali, incólume, intocado pelo cinismo, pronto a ser mordido e provado outra vez. Porque, de facto, o essencial é invisível para os olhos.

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

MÁRIO DE CARVALHO: O HOMEM QUE ENGOLIU A LUA

Neste momento em que, para quase todos, se aproximam as férias grandes, as quais, consoante a perspectiva, ou nos possibilitam, ou nos obrigam à convivência com os mais jovens, faz sentido que eu aproveite para falar de um par de histórias infantis.

Comecemos por um autor português. A verdade é que, periodicamente, os escritores portugueses, muitas vezes com obra consagrada para os adultos, metem mão à difícil tarefa de escrevinhar umas patetices para os miúdos; mostram, de certa forma, que estamos a falar de públicos diferentes; e que é muito fácil um bom romancista afundar-se completamente quando se põe a trabalhar para a petizada. Não vem daí mal ao mundo. O importante é que prometa não voltar a tentá-lo - ou, então, que tente muito, que treine intensamente, antes de tornar a publicar contos infantis.

Em contrapartida, Mário de Carvalho escreveu, em 2003, uma história com imensa piada, chamada O Homem que Engoliu a Lua. Se o que vos interessa saber é se este livro, com ilustrações belas e bem engraçadas, de Pierre Pratt, funciona com os mais novos, deixem-me contar como o descobri e o fomos usando, e com que resultados: comprei-o, numa Feira do Livro, ao meu filho. Andava ele no 5º ano, tinha dez de idade. Lia muito bem sozinho, mas como tinha especial prazer em ler a meias comigo, logo na noite do dia da compra nos debruçámos sobre esta narrativa acerca de um homem que, uma noite, à janela, bocejando, engoliu a lua. E rimo-nos perdidamente, deliciados nessa mistura de realismo, em que vemos desfilar as características e as personagens típicas de um bairro lisboeta, descritas, às vezes, com alguma crueldade, e o fantástico que surpreende o leitor adolescente e o adulto batido.

Meu filho apreciou tanto tudo isto que, numa aula de Português em que lhe competia a tarefa de
ler, em voz alta, para a turma, um pequeno texto escolhido por si, optou por O Homem que Engoliu a Lua. E, claro, foi um absoluto sucesso: leu com gosto e entoação, imitando as vozes e mimando as personagens mais engraçadas, provocando gargalhadas, engasgos e sufocações de riso à turma e à professora - esta última, aliás, senhora competente mas muito pouco dada à galhofa.

Redescubro o livro nas mãos da minha filha, com quatro anos. Está velhinho. Mas reencontro, lendo-lho, o mesmo encantador Zé Metade (assim chamado porque o seu corpo fora tragicamente separado em dois, quando tentava apartar os contendores de uma luta de navalhas), ou o Andrade da Mula que, perante o barulho, se chega à janela, em camisola interior, para gritar, para baixo: «Lá a calari...»; ou o Presidente da Junta, querendo solucionar o problema, com conselhos e apartes discutíveis, no mínimo.

É um texto muito bem escrito, e sem concessões. Tem palavras difíceis, mas não demasiadas: as suficientes para que o leitorzinho possa alargar o seu vocabulário, sem ter de interromper constantemente e sem perder o fio, mesmo que não perceba este ou aquele termos. Como, sendo adulto, gosto muito desta história, destas personagens, desta escrita, parece-me o livro ideal para ser lido, pelos putos, a meias com pais ou professores.