sábado, 4 de setembro de 2010

JOÃO TORDO: O BOM INVERNO


As comparações podem parecer espúrias, mas ao falar de José Luís Peixoto, Gonçalo M. Tavares, valter hugo mãe ou João Tordo, elas impõem-se, porque estamos perante autores portugueses jovens, de uma mesma geração, apesar da diferença de anos que possa separá-los uns dos outros, autores que compõem o rosto, tal como tem vindo a ser desenhado nos últimos dez anos, da nova literatura portuguesa.

Dos referidos, João Tordo foi, salvo erro, o que mais recentemente começou a revelar-se: é também, de entre todos eles, o mais preocupado com a história como história. Enquanto que muito do que os seus pares escreveram radica num certo experimentalismo formal, ou no puro prazer poético da palavra, os romances de Tordo são, num sentido que não visa diminuí-los, autênticos guiões: há uma técnica dominada, a que, todavia, não falta alma. Trata-se de uma técnica cinematográfica, que se preocupa em contar a história de modo a manter o leitor sempre preso de cada passo da narrativa, mais do que em nos deleitar com o sabor das palavras ou a profundidade do pensamento. A linguagem é um instrumento. Os seus romances usam-na; não vivem dela, nem nela, nem para ela.

Há dois traços importantes, comuns aos livros que conheço de Tordo: um, é a cartografia de uma certa forma de desenraizamento. Os protagonistas estão longe do seu país natal, e essa errância torna-se um elemento fundamental para a atmosfera de desintegração, de inadaptação, que constantemente se convoca; a outra, tem que ver com a sensação de «estranheza», que atrai e repele a um tempo, e que Freud tão bem capturou. Tais dois traços estão, aliás, intimamente ligados: na viagem, no desenraizamento, se descobre não simplesmente um novo mundo de postal turístico, mas um mundo sinistro, de situações aterradoras, velados perigos, nunca inteiramente esclarecidos, e malevolências que se vão aproximando sorrateiramente. (Aquilo que leva à qualificação, talvez ligeira, dos romances de Tordo como góticos...)

Estou a gostar muito de ler O Bom Inverno. O narrador é uma personagem inenarrável: um escritor hipocondríaco, que se apresenta como uma síntese do fracasso em todos os departamentos da sua vida, da profissional à amorosa. Sonha com o livro que o vingará do mundo, mas não o escreve. Sente a perna destroçada; lamenta-se, recorre a um coxear e a uma bengala; fecha-se em si, fecha-se em sua casa, e é a partir deste fechamento, rompendo de súbito com ele, que, quando menos se espera, parte para sucessivas viagens, ao longo das quais acaba unindo-se a um grupo estranho, que o leva, por sua vez, a fazer-se convidado de alguém que se rodeia de um grupo ainda mais estranho: espécie de conjugação astral, instável e perversa, de forças e de fraquezas que nada de bom auguram.

Actua, como óleo do motor de toda a evolução, um subtil toque policial; um cheirinho, somente, que alicia o leitor a partir de um crime que nos é descrito desde o início. O romance regressa, pois, à sua pré-história, de forma a reconstituir os passos que levaram a esse homicídio de que tivéramos previamente conhecimento: o crime, ele próprio, estranho - «Pusemos o homem dentro do cesto do balão e deixámo-lo desaparecer no céu pálido do Lácio» -, que tem como vítima uma personagem poderosa, excêntrica, misteriosa, o dono da casa, um produtor de cinema, Don Metzger.

João Tordo definiu-se: um estilo, um tom, uma lógica, um pathos. Uma certa forma, realista e dramática, de enunciar os diálogos, que lhe tem sido reconhecida pela crítica. Um universo com veios sórdidos e sinistros, uma descida à psicologia das manias e do fracasso. Apropria-se de si: João Tordo vem-se tornando, cada vez mais, João Tordo. Que mais pedir a um autor?

1 comentário:

barroca disse...

Sem dúvida, um bom livro.