terça-feira, 10 de agosto de 2010

JOHN MILTON: PARAÍSO PERDIDO




Toda a teologia que tem a sua génese no judaísmo e no cristianismo está minada por uma pergunta irrespondível. Se Deus é sumamente bom, omnisciente e todo-poderoso, de onde surge o mal? Só se admite que Deus consinta no mal, ou porque Ele não é bom, ou porque o não previu, ou porque nada pode contra ele.
A ideia de um ser caído, Satanás, não vem ajudar.
Deus não poderia havê-lo antes suprimido? Ou forçado a render-se? Ou gostamos de pensar que essa relação obsessiva faz parte do grandioso plano divino, de facto como se, na ausência de um verdadeiro inimigo, os actos do Senhor não brilhassem tanto?

Em todo o caso, gosto de reler o extraordinário poema de Milton, Paraíso Perdido. Sou franco: «reler» é força de expressão; na verdade, é principalmente aos dois primeiros livros desta obra, cuja segunda edição (de 1674) contém doze, que retorno frequentemente. Mas acho inexplicável que um autor do século XVII tenha sido capaz de, tão corajosamente, sondar o mistério da personalidade diabólica.

Não se pode propriamente afirmar que Milton seja o advogado de Satanás. Escreve como se ele mesmo, o autor, não tivesse de tomar partido. É um repórter que assiste, imperturbável, aos difíceis momentos da Queda, da preparação para a longa guerra entre o Bem e o Mal e, como parte desta, a tentação de Adão e Eva e sua expulsão do paraíso. E deixa que, à vez, cada um dos eternos adversários, Deus e o Diabo, tome a voz, exponha as suas razões, entusiasme os seus com os argumentos que lhe justificam a posição. Ou seja: o extraordinário é, aqui, o facto de que Satanás possa apresentar ao leitor a sua perspectiva: amarga, rebelde, inconformada, triste, raivosa, de uma vertiginosa liberdade, que surge resplandecendo em todo o seu valor.

Porque, nas suas palavras, a vitória não é possível: mas quando um acto não aspira à vitória, então é simplesmente vingança. E a origem do mal residiria, pois, nesse desmedido orgulho de Satanás, que mesmo não podendo ganhar, se recusa a desistir, porque pensa que é melhor reinar no inferno do que servir no céu.

Detenhamo-nos nesta concepção do demoníaco, que não justifica o mal procurando racionalizá-lo, ou seja, procurando compreender-lhe as razões (como o faz a psicologia contemporânea), mas, em vez disso, o toma como uma escolha livre e, mais do que isso, como a única escolha em que a liberdade se pode cumprir. Os anjos caídos sabem que, exceptuando a sua ingrata saída, só lhes restaria a escravidão, ou seja, servir a Deus.

E agrada-me isto num poeta inglês de há quatro séculos A capacidade de olhar o outro, seu contrário, sem o humilhar nem diminuir. Não lhe dando razão (pois dar-lhe razão seria uma derradeira afronta, uma nova forma de paternalismo); antes, dizendo: Tu és isto. Vejo o que tu és. Não posso sequer dizer que te respeite. (Raramente a enunciação do respeito que se tem por quem nos contradiz não é um exercício de hipocrisia). Mas percebo que, se não fosses o que és, já não serias tu. Serias um servo.

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