terça-feira, 7 de setembro de 2010
FRIEDRICH NIETZSCHE: THE PRE-PLATONIC PHILOSOPHERS [tradução, prefácio e comentário: Greg Whitlock]
Persiste como convicção própria do senso-comum europeu a ideia de que a filosofia é uma espécie de reflexão que só na Europa se compreende e se conhece bem: de que, em suma, só entre nós se cuida.
O livro que tenho vindo a ler é, a vários títulos, uma prova do contrário. Chama-se The Pre-platonic Philosophers; é de Nietzsche; se aqui, estranhamente, o refiro no seu título inglês, faço-o porque o que me importa é, de momento, a tradução para inglês desta série de lições que Nietzsche leccionou sobre o tema. A tradução em causa foi empreendida pelo norte-americano Greg Whitlock. A obra foi editada pela University of Illinois Press.
Ou seja, é um académico americano que se dedica à tarefa de recuperar um conjunto de escritos, de Nietzsche, a que os melhores tradutores europeus do filósofo nunca deram a devida importância; ou a que alguns, em vida, não tiveram tempo para se entregar (sendo que os piores a usaram desenquadrada e abusivamente), e que, por motivos que podemos imaginar, os jovens académicos contemporâneos preferem ignorar: 1. porque são, afinal, rascunhos, meras notas de trabalho, com lacunas várias; 2. porque são textos que implicariam remissões que o próprio Nietzsche, ou não fez, ou fez abreviadamente; 3. porque são textos com longas citações em grego (e inúmeros termos gregos incorporados na prosa alemã) etc, etc. Eu imagino: dificuldades suficientes para fazer do manuscrito um petisco que tem sido melhor deixar intocado.
E no entanto, como Whitlock lembra - no prefácio e no excelente comentário, autêntica e fascinante dissertação académica com que conclui o livro -, estas lições oferecem teses muito importantes para a redescoberta do «primeiro Nietzsche» (porventura ainda, mais filólogo do que filósofo). De resto, o próprio título, que é uma provocação, encerra já em si uma dessas teses: a de que o pensar de Sócrates faria ainda parte do ciclo da filosofia trágica dos gregos, e que é Platão, primeiro filósofo misto, que pode ser visto como o coveiro de todo o movimento espiritual que o antecede. E, ao contrário de Platão, Sócrates não contém mistura: representa ainda um tipo puro, porventura o último, de filósofo e de filosofia.
Whitlock, descrevendo as rivalidades e inépcias que fazem parte da forma como os académicos, qual abutres, têm, nos últimos anos, sobrevoado os textos de Nietzsche (e as malfeitorias a que os sujeitaram), mostra a praticamente ignorada importância desta série concreta de lições que Nietzsche preparou para um curso. Revelam limpidamente a posição do filósofo, a qual é, no que respeita ao modo de abordar os antigos gregos, muito diferente da de pensadores como Hegel ou Heidegger: enquanto que Hegel e, sobretudo, Heidegger pareciam mais preocupados em usá-los como meios para atingir a verdade a que, segundo eles, só com eles mesmos se completaria, Nietzsche tem, antes, a intenção de mergulhar na civilização grega. Não se compreendem os filósofos pré-platónicos à luz do mundo ou da vida de hoje; nem da ética ou da estética que se queira utilizar como critério actual. Não existe analogia: compreendemo-los na medida em que nos despedimos de nós próprios, e entramos numa outra realidade, com a sua lógica interna e os seus valores e critérios intrínsecos.
E isto, não a recuperação da antiguidade, não o olhá-la a partir de uma lente actual, mas o acto de nos introduzirmos nela, sem preconceitos, é o que torna a lição de Nietzsche tão bela e tão interessante.
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