Alguma coisa, obviamente, se procura na chamada literatura de género. Não digo que uma obra de ficção científica, por exemplo, não possa ser literariamente excepcional: Fahrenheit 451, para falar de uma que me é particularmente cara, de Ray Bradbury, é-o de todos os pontos de vista, com uma escrita suculenta, exigente, e uma trama que tanto interessou a François Truffaut, que a filmou. Ou os livros de Ursula Le Guin. Igualmente, sabemos de romances policiais que são obras-primas de psicologia, ou notáveis como reconstituições de época, ou por histórias bem urdidas nos pormenores que vão revelando pistas sem as oferecer. (Ruth Rendell basta). Mas, insisto, não costuma ser nenhum desses aspectos literários o que predomina na escolha de uma obra de género.
Pode consumir-se, precisamente, como o repouso em relação a livros ditos mais "sérios". Pode consumir-se como um determinado vício: o teste das nossas próprias habilidades de raciocínio, na secreta esperança de estarmos em competição com o detective; ou pelo impacto da fantasia, que nos transporta para universos alternativos. Em resumo, há um "quê" concreto que nos acena do fundo de um romance de género - e que não é, certamente, a poesia das palavras ou a profundidade da reflexão.
Posto isto, e sem preconceitos, sou um grande admirador de praticamente todos os géneros de literatura de género.
No que respeita aos policiais, tenho estado a interessar-me pelos autores nórdicos que, por alguma razão, se têm tornado grandes mestres do suspense e do mistério.
Caiu-me nas garras, agora, O Hipnotista, de Lars Kepler.
Começa porque não existe nenhum Lars Kepler: o pseudónimo encobre um casal, Alexander Ahndoril e Alexandra Coelho Ahndoril, o que não vem senão na linha de uma feliz tradição nos policiais, que é o de romances escritos a meias (a começar logo pelo caso do magnífico Inspector Ellery Queen).
Ora O Hipnotista narra uma dessas histórias em que, nos interstícios palpitantes do drama, vamos conhecendo a pessoa de um investigador, neste caso Erik Maria Bark, com um passado dúbio, uma história pessoal credível, uma família em crise; ou seja: o que acessoriamente nos interessa neste romance é a verosimilhança de uma personagem em face dos problemas éticos que ressurgem, do seu passado, no embate com um novo caso, bem como a descrição, pormenorizada e dura, de uma Suécia que, há uns anos atrás, ainda nos aparecia como um paraíso da social-democracia, um exemplo feliz, e hoje observamos que se trata de uma sociedade imperfeitíssima, de onde não desapareceram os crimes, nem os bêbedos ou as morosidades da Justiça.
Diria que, como thriller, obedece a uma técnica saudavelmente enervante. Onde, ao princípio, notava uma excessiva vontade de descrever e explicar (desde em que consiste a "hipnotização" até, por exemplo, o que é uma "autópsia" ou a equivocidade semântica deste termo) cedo vejo um texto que se despe de tudo o que não é imediatamente fundamental: e numa linguagem precisa, narrando num presente que torna as cenas visíveis, como se a pensar numa futura adaptação cinematográfica, com capítulos curtos, que terminam em pontos estudadamente críticos, obrigando-nos a saltar de uma vez para o capítulo seguinte, este romance tem todos os ingredientes para uma leitura precipitada e nervosa, que caracteriza os melhores policiais.
560 páginas que se devoram em uma ou duas noites: estão a ver o género?
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