quinta-feira, 12 de agosto de 2010
TOLSTOI: ANA KARENINA
Costumam ser referidos certos autores norte-americanos como exemplo da mestria na construção de diálogos convincentes.
Sem querer contrariar, peço, no entanto, que me sigam por um instante, enquanto vos mostro algo:
« - Já está aqui há muito tempo? - perguntou Kitty, estendendo-lhe a mão. - Obrigada - acrescentou, quando Levine apanhou o lenço que lhe caíra do regaço.
« - Quê? Não, há pouco. Cheguei ontem, quer dizer, hoje... - respondeu ele, que não percebera logo a pergunta, em virtude da emoção que o assaltava. - Pensava em ir a sua casa - prosseguiu; mas, ao lembrar-se do motivo porque procurara Kitty, perturbou-se, enrubescendo. - Não sabia que patinava. Patina admiravelmente.»
Está aqui tudo, e de que maneira; e com tamanha simplicidade: os pormenores aparentemente irrelevantes que, no entanto, não nos parece que estejam a mais (Kitty faz-lhe uma pergunta e, antes de ouvir a resposta, agradece-lhe o facto de lhe ter devolvido o lenço que ela deixara cair), os enganos (Levine não percebeu a questão, dá uma informação errada, corrige-a imediatamente a seguir), as súbitas associações (ao responder lembra-se do que o traz ali, e cora), as bruscas mudanças de assunto, perante um caminho embaraçoso da conversa. Ou seja, as palavras trocadas pelos dois, entre actos falhados e gestos espontâneos, revelam mais do que qualquer explicação suplementar. É encantador.
Estou perante, como terão reconhecido, Ana Karenina. No episódio que vim de citar, todo o comportamento de Kitty é ambíguo. Levine, completamente apaixonado, inseguro, incapaz de se lhe declarar, vai deixando que aflorem pequenos sinais, num flirt lindíssimo, de uma ingenuidade comovente. E as reacções da rapariga são contraditórias, semeando a confusão na mente do jovem. Ora parece simpatizar com a sua ousadia, que nunca verdadeiramente o é, ora se mostra fria, imersa nos seus pensamentos, «como se o sol se escondesse atrás das nuvens», com uma ruga desenhada na testa.
Este monumental romance tem início com um aforismo inesquecível: «Todas as famílias felizes se parecem; as infelizes não». E, a partir daqui, introduz-nos no seio de uma família infeliz, no tempo em que a dona de casa descobrira a infidelidade de seu marido, que a traíra com a preceptora francesa das crianças. E, acreditem, é impressionante a forma como Tolstoi nos apresenta Oblonski, o marido, na sua oscilação entre a rotina, que aspira a manter, e esta crise familiar que faz estalar todas as peças de qualquer possível rotina.
Todos os gestos de Oblonski, no modo como apanha o roupão sem se levantar, ou toma a taça de café, ou se limpa de migalhas, compõem um simulacro de quotidiano costumeiro: uma "normalidade" constituída de pequenos prazeres, falta de ideias próprias, bonomia e simpatia no trato com os subalternos. (Os seus máximos desígnios limitam-se, praticamente, a isso). Como é que, entrincheirado num mundo tão suave, frágil e pouco combativo, se pode enfrentar a mudança e a infelicidade, munidas de semblantes trágicos, lágrimas, gritos, palavras imperdoáveis?
Tolstoi não pretende inovar, mas retratar. Tal como Dostoievski, Flaubert ou Eça de Queirós - e esta associação nada tem de gratuito -, o que ele faz é expor a sociedade de um certo tempo, com as suas formas culturais e mentais, usando personagens cuja singularidade as torna tão concretas como os nossos vizinhos ou os nossos familiares. Ana Karenina não representa "a" mulher, nem sequer "a mulher russa", ou simplesmente uma heroína trágica, ou romântica, ou o que entendam: é Ana Karenina; o seu sentimento e o seu sofrimento não são esquemas nem símbolos. Estão vivos. São reais. Os dela e os de todas as personagens que aqui moram, porque não se conhecem a si mesmas, nem sabem explicar-se em face de si próprias; vão mudando imperceptivelmente: não falo de revoluções decisivas, mas de ambíguas transformações interiores. (Mesmo a revolução interior e exterior de Ana pouco mais é do que uma soma de de incertas e mínimas mutações, até ao momento em que se convence que o seu destino é a irreversível paixão...). Tudo são minúsculos ângulos, pequenas incertezas, metamorfoses subliminares. Kitty, por exemplo, que julga amar, influenciada por uma certa visão romântica do amor, realmente não sabe se ama, ou, sequer, quem ama. Leia-se o trecho em que, num baile, sob o encanto simultâneo de Ana Karenina, que só há pouco conheceu, e de Vronski, por quem se apaixonou, ela se apercebe da sedução a que ambos se entregam, mal crendo nos seus olhos e não querendo crer neles: e como Kitty luta entre o encantamento, que não pode desaparecer, antes se reforça perante a beleza do par, o ciúme, a humilhação, a auto-piedade, o arrependimento, o desejo de não acreditar no que vê.
São esta mobilidade, este auto-engano das personagens, esta sobreposição de sensações e sentimentos, que fazem da subjectividade emocional de cada uma delas algo da ordem do real. Não há indivíduos monolíticos nem estados monocórdicos. Ana Karenina é um anjo de bondade e um demónio apaixonado. Não podemos excluir qualquer dos termos. Nem sequer são "realistas": são reais.
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