segunda-feira, 13 de setembro de 2010

MARIA HELENA DA ROCHA PEREIRA E O ACORDO ORTOGRÁFICO

Quando entrei para o curso de Filosofia, desgrenhado e deslumbrado, estava disponível para me entregar de corpo e espírito às mais ínfimas experiências e descobertas.
Testava as novas ideias, os textos e os autores que lia pela primeira vez, os professores, os colegas. E no meio desse cadinho de experiências que o curso de Filosofia me proporcionava, lembro-me da leitura de A República, de Platão, numa volumosa edição da Gulbenkian, com folhas rijas, amareladas, na recomendadíssima tradução de Maria Helena da Rocha Pereira.

A minha admiração por esta mulher data de então. Não sabia que estivera entre seguir matemáticas ou seguir clássicas, digamos assim (o que só dignifica, como escolha propriamente dita, a sua decisão), nem que fora a primeira mulher a ingressar na Universidade de Coimbra. Mas desde que li A República que tenho consciência de que uma tradução feita por Maria Helena da Rocha Pereira é uma tradução rigorosa e exigente.

Leio, numa entrevista que deu ao Expresso, que, ainda muito activa nos seus 85 anos, é uma entusiasta defensora do Acordo Ortográfico, em cuja construção, aliás, de alguma forma terá colaborado. Sendo eu alguém que discorda do acordo, mas ansioso por discuti-lo com seriedade, procurando e sopesando, com respeito, os argumentos dos que o defendem, não posso deixar de me deter, por essa razão mais, nesta entrevista de uma mulher que admiro há muito.

Os seus argumentos? Na verdade, não há argumentos. Ou melhor, há um, que vejo sistematicamente repetido por todos os defensores, numa única fórmula: a necessidade de uma "uniformização" da língua. Ora trata-se de uma falácia, porque "a necessidade" dessa uniformização, que se menciona como prova, é, precisamente, o que me parece que fica por provar. Se pusermos de parte as razões estratégicas, de interesse estritamente político e económico, que valem o que valem, não encontro qualquer motivo histórico, etimológico, sobretudo cultural, que aconselhe essa unificação.

Há, parece, uma questão de imposição da língua portuguesa no mundo, que a uniformização facilitaria. Maria Helena da Rocha Pereira refere o ridículo de, «nas grandes assembleias internacionais», ter de se fazer «uma versão em ortografia brasileira e outra em ortografia portuguesa»; concordo em absoluto que se trate como ridícula a solução achada nessas «grandes assembleias internacionais»: só me pergunto por que razão fazê-lo, mesmo na falta de um acordo ortográfico. Será porque os brasileiros não entenderiam um texto escrito no português de Portugal? Ou porque os portugueses se sentiriam ofendidos, caso se optasse por redigir uma acta, por exemplo, no português do Brasil? Mas, desse ponto de vista, pergunto-me por que usarão unicamente duas versões. Por que não acrescentam uma, no Português de Moçambique, uma, no de Angola e outra no de Cabo-Verde?

Na minha perspectiva, a diferença é, em si mesma, uma riqueza. Que haja diversas formas de usar a mesma língua, dificilmente me parece constituir um problema. As minhas leitoras do Brasil continuam, espero, a ler o que vou escrevendo no meu português com excesso de "consoantes ociosas" e de acentos. Não creio que se incomodem com isso, ou que disso se queixem. Faz parte de tudo o que sou - é uma maneira de me exprimir que me é própria. Pela minha parte, gosto, cada vez mais, de penetrar os textos dos escritores brasileiros, e parte do interesse que a sua prosa e a sua poesia têm, para mim, reside precisamente na visita que faço a esse jeito particular, a esse modo seu de redigir as palavras, que transmite, ao mesmo tempo, toda uma cadência e uma musicalidade, que me encantam, mas não são minhas. Perdão: que me encantam porque não são as minhas.

Há, no aparato do português de Portugal, funções e vias que não devem ser aparadas como se aparam unhas. Há, no português de Portugal, algo que tem que ver com a personalidade dos portugueses. Prolixos, complicados, excessivos. Não é uma virtude nem um defeito: é uma especificidade. Há, no português do Brasil, uma simplificação adorável - digo-o sem o menor paternalismo -, que os não impede de falar bem ou escrever bem. Quando leio Graciliano Ramos, não preciso de tradução. Não quereria vê-lo vertido para um português que não fosse o seu. É assim que o quero ler. Como ele escreveu. Não de outro modo.

A prosa vai longa. A minha pátria é, como em Pessoa, a língua portuguesa. No único acordo que considero concebível: a de um mosaico em que cabem todos os jeitos e modos, todas as diferenças e todos os desacordos.

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