quinta-feira, 4 de março de 2021

MÁRIO DE CARVALHO: BURGUESES SOMOS NÓS TODOS OU AINDA MENOS

 O título, pedido emprestado a um poema de Cesariny, é indicadíssimo para esta reunião de contos, e indicadíssimo em dois sentidos: porque o que se respira em cada um deles é o envelhecimento de um mundo que já foi o de um esplendor burguês; e - interpreto eu - como antecipação de, e resposta a, uma previsível crítica ao Autor: a de que ele tivesse trocado uma prosa de combate (que nunca o foi numa acepção panfletária, ou neo-realista, mas não deixou de o ser enquanto narrativa das várias formas de luta entre David e Golias), por breves episódios, sem conflitos nem desigualdades, nada senão o reencontro da memória com um presente que busca, impossível e ridiculamente, manter o passado, ou refazê-lo, ou imitá-lo. Burgueses somos, no fundo, todos. O que escreve e as suas personagens, os que o lêem e os que criticam. Ou ainda menos. Quase sempre "ainda menos", quando o Autor pretende dar-nos a ver aquilo em que tudo o que é burguês se torna. É a decadência. 




Começo por um ponto que não será consensual: numa língua de prosadores tão bons, seria um exercício arbitrário e medíocre procurar-se o primeiro; não sei dizer se Eça de Queirós é o melhor escritor em português. Mas na sua qualidade de descobridor do uso mais aguçado desta língua, para a composição de um olhar dolorosa e comicamente irónico sobre os portugueses, Eça de Queirós é imbatível. Inventou uma língua nova dentro da língua portuguesa, uma especificidade da ironia-em-português, que se reconhece à légua e tem, felizmente, herdeiros. Mário de Carvalho é um deles. Se fizerem o favor de seguir o trecho que transcrevo, dir-me-ão o que pensam do assunto:


O moço resistente, de fronte límpida e peito feito, solicitado pelas colegas, respeitado e estimado por todos, aqui jazia, de casacão de felpa azul de trazer por casa, com voltas e punhos de veludo vermelho, um corpo dobrado e flácido, palidíssimo, tremebundo, de olhar vazio, descaído, resignado contemplar de longe, duas farripas de lenço, retorcidas, descaindo dos bolsos das calças, adversos ao protocolo habitual dos lenços em salões burgueses.


O humor de Mário de Carvalho é terrível. Surge às vezes, quase sempre, da laboriosa edificação de uma derradeira ilusão, que parece aguentar-se de pé, até um pormenor final; uma estocada: a percepção da fralda da incontinência, assassina de uma última esperança romântica, num dos contos, como exemplo e símbolo do que quero apontar. A amargura da carne que se esboroa, da mente que se debilita e confunde, dos órgãos que nos tornam dependentes. Isto é apenas trágico, claro. O cómico destas extraordinárias tragicomédias está em um narrador que não reparou no hiato temporal, ou não o levou a sério, e que, de cada vez, se prepara para rever os e as que brilharam no seu passado. É a busca de uma eternidade na nossa condição finita. É muito triste. E é irresistivelmente cómico, que se há-de fazer?

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