Dois
breves trechos, cada um em sua página, fazem a introdução a esta obra: o primeiro, de Vergílio Ferreira, recorda que a solidão é sempre uma possibilidade que se revela sobre o fundo da convivência - de algum tipo, mesmo negativo, de convivência. Quem a desconhece, ou não tenha alguma forma de consciência dos outros, não poderia sequer reconhecer-se como "eu"; o que não percebe a essência dos laços com outrem não poderia também perceber-se como "só"; o segundo excerto, de Rodrigues Lobo, faz o elogio do diálogo como o estilo privilegiado de escrita (e aquele que, de certa forma, contém todos os outros).
Dir-se-ia que estes dois ensinamentos mostraram, à escritora, o caminho do livro que ela deveria escrever. Um romance sobre um cruzamento de pessoas que permite, a cada uma, reconhecer-se a si própria, e um romance onde quase nada existe senão o diálogo. Longe de uma peça de teatro, porque podemos acompanhar o que algumas das personagens pensam, e como se avaliam mutuamente, assume a ausência de um narrador, de qualquer enquadramento ou explicação. Não sabemos, acerca daqueles sujeitos em um jantar e, depois, durante algum tempo de convívio, após o jantar, senão o que cada uma diz, aos outros, de si ou dos outros. Por outras palavras, somos espectadores a quem são negadas indicações. Entramos na reunião de pessoas que conversam, não sabemos quem são, e não percebemos durante muito tempo a quem atribuir cada uma das falas. Aos poucos, vão surgindo nomes, e continuamos a não adivinhar, necessariamente, que nome atribuir a cada uma das falas. Não tem a menor importância porque, nessa espécie de daltonismo, vamos descobrindo e caracterizando cada um dos presentes.
São indispensáveis, para escrever um romance com esta ousadia, duas qualidades. Ter apreendido a mimar o discurso oral, sem discursos demasiado prolixos e literários, mas, pelo contrário, lapsos, hesitações, interrupções, e nesse aspecto, Isabel da Nóbrega é absolutamente extraordinária. Na nossa cabeça, mais do que ler, parece-nos estar a ouvir. A outra qualidade é oferecer-nos o ritmo do pensar, com confusões e cruzamentos - e isso é muito mais difícil, e menos conseguido, porque a solução é a de tratar o pensamento como uma fala interior, e nós sabemos que o pensamento nunca é propriamente uma fala. Mas a inteligibilidade o exige.
O que se discute naquele encontro é denso. No fundo, aquilo que Sartre, Simone de Beauvoir e os existencialistas contemporâneos procuraram dar a ver. O que define a verdade de cada um? As suas ideias (políticas, religiosas, artísticas), ou os seus casamentos - em nenhum caso completamente bem sucedido ou para além de um qualquer equívoco essencial e incomunicável -, ou os seus actos, sejam a caridade periódica, o brilho social, um carácter contestário? Aquelas pessoas julgam conhecer-se, ou tentam conhecer as que são, de certa forma, novas no grupo, mas não o conseguem melhor do que o leitor. Talvez, então, a confusão em que nos sentimos por vezes perder seja deliberada: o resultado do exercício através de que a autora nos mostra que, se só vivemos com os outros, nunca realmente conseguimos viver com os outros a não ser separados por um mistério e por uma incomunicabilidade que são a condição de toda a interacção e conhecimento mútuos.
Sem comentários:
Enviar um comentário