quarta-feira, 17 de março de 2021

SOMERSET MAUGHAM: FÉRIAS EM PARIS

  Somerset Maugham - já o disse aqui, com toda a certeza -, sobretudo o dos contos, mas também o dos romances maiores (quem não leu e não guardará para sempre "O Fio da Navalha", por exemplo?), é um dos autores predilectos de minha mãe. Ela inculcou-mo desde criança, embora, para ser absolutamente sincero, o considere muito desigual: capaz de obras portentosas, que ferem e nos deixam marcados, e de umas novelas insípidas e pouco trabalhadas, diria eu que para fazer dinheiro rapidamente, mais do que por convicção. 



Saído, ou a sair, de um confinamento penoso, fui abastecer-me de livros - ah o dia triunfal da reabertura das livrarias! - e trouxe, entre muitos outros, de autores diversificados, Férias em Paris, de Somerset Maugham. Era Maugham e era Paris, era o cruzamento de dois amores, era o início da II Guerra Mundial com as iniquidades que os que a não sofreram não têm o direito de ignorar ou esquecer.


Na obra de Maugham a escrita é muito simples: nenhum trabalho "de Autor" sobre a linguagem. Não se trata de prender poeticamente o leitor, ou de o aliciar pelo poder da retórica.  Usa-se a linguagem como meio para narrar uma história.  Há um estilo inglês que, mesmo na tradução, se deixa reconhecer - e reconheço, sem ofensa, desde as Aventuras de Enid Blyton ou os crimes de Agatha Christie. 

Também profundamente "british" é a ironia: uma ironia sem acutilância, que não exprime cinismo, e sim, pelo contrário, uma certa simpatia pelas personagens. Revela apenas a consciência  daquilo de que, sobre si próprias, as personagens não têm consciência. Este suplemento de saber por parte do narrador, esta visão que põe continuamente em causa a visão que têm de si os Mason, do seu amor pela pintura ou pela música, do seu conhecimento de um Paris "típico", que os outros estrangeiros desconheceriam (impagáveis descrições), é o fio fino e elegante da ironia de Maugham.


Os vilões de SM, que nunca verdadeiramente o são  (e até por isso) parecem viver e respirar ao pé de nós. Conhecemo-los, compreendemo-los até certo ponto, por muito que nos irritem, reconhecemos-lhes o comportamento daqui, dali, deste ou daquele. São consistentemente plausíveis. Basta pensarmos em "Servidão Humana". Daí que, precisamente, uma personagem como Simon Fenimore nos decepcione. Nunca a entendemos completamente na sua agressividade e na "abstinência física e emocional" com que recebe o seu amigo em Paris. Aqui, ao contrário do melhor de Somerset Maugham, algo de artificial e inverosímil acaba por se instalar e predominar. O que não destrói os aspectos mais interessantes do romance: a relação de Charley com a jovem Lydia, vítima da revolução russa, e a sombra implacável da Guerra. Essa Lydia, a jovem prostituta, que afinal não tinha o título de princesa nem se chamava Olga, como os clientes julgavam, mas era efectivamente russa, e nos contará a sua trágica história em monólogos de demasiadas palavras. (A sua história e a do marido que sempre amou, esse sim, um vilão completo, apesar de ser construído com alguma artificialidade, também). E essa Guerra que era já um destino, embora se acreditasse ser possível viver como se não. 

P.S. Mas seria injusto não acrescentar que uma outra leitura, em que se destaca a oposição entre a cultura russa, quase na forma como Dostoievski no-la mostra, niilista e apaixonada, e a visão de uma média burguesia inglesa, confortável, acreditando conhecer a Arte, mas não raspando, dela, senão a superfície, a partir de ideias feitas, como que faz aparecer à tona um romance muito, muito mais interessante. E, desse ponto de vista, o fim de Férias em Paris é um twist profundo e maravilhoso.

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