terça-feira, 27 de abril de 2021

PATRÍCIA REIS: ANTES DE SER FELIZ

O que me surpreende e encanta desde o princípio é que, sendo este romance escrito por uma mulher, toma como narrador-personagem, o qual conta, de certa forma, uma história sua
(o "narrador auto-diegético", portanto), um homem particular: primeiro uma criança e um adolescente, depois um jovem, por fim o adulto de cerca de 30 anos, cuja vida manterá o fantasma contínuo de um amor impossível. Por muito que Inês se afaste, cortando aliás todos os laços com a família e com o país, e ele se afaste dela por sua vez, ou seja, se esforce por a deixar ao longe, sem a procurar, nem telefonar, casando-se inclusivamente com outra mulher (por pouco tempo), a verdade é que Inês será, de uma maneira infeliz e marcante, a única mulher da sua vida, o único, o verdadeiro amor. Mas espanta-me este poder de uma autora, para mergulhar na pele e no pensamento de um homem que escapa a todos os clichés do género. Um homem com uma sensibilidade fina e uma inteligência emocional, e um pudor, que são, de resto, a base da compreensão e dos laços que há-de manter com o pai e com o tio dela (também homens singulares), até à morte deste e daquele. Não que todos os homens tivessem de se reconhecer exclusivamente no machismo e no futebol, bem entendido; mas, ainda assim, esta reconstituição de uma masculinidade mais subtil, que não é, porém, a de uma mulher travestida, e sim a de um certo tipo, raro, ou que prefere ocultar-se, de homem, constitui, quanto a mim, uma das conquistas deste romance de Patrícia Reis. Tudo, na narrativa, é perfeitamente credível: desde a linguagem despretensiosa, e magoada até ao ressentimento, do narrador, ao desenho das personagens e aos mal-entendidos das relações: na família dele, por um lado, sórdida, ruidosa e disfuncional; na família dela, por outro, em que, porventura, a ausência da mãe, fez com que tivessem de se confrontar desde cedo com um amor que nunca soube exprimir-se. Ou de um pai que nunca soube manifestá-lo a contento de uma menina carente. Quem nos conta portanto a história, Pedro, o jovem que sempre preferiu o silêncio carregado de incompreensões e tristeza, desta família, às raivas, gritos e agressões na sua própria família, torna-se, convivendo tanto com aquela, a consciência privilegiada e sábia, e atenta, dos equívocos próprios de palavras que nunca foram ditas, gestos que nunca foram oferecidos. Num livro de poucas páginas, cento e tal, o romance de Patrícia Reis abre-nos para uma Figueira da Foz que, por muito que se fuja, Inês primeiro, Pedro depois, será o centro do que permanece, o que valeu a pena, mesmo no desencontro, e da única esperança do que faz sentido.

Sem comentários: