1. Foi José Mário Silva quem, numa entrevista que lhe fiz (Fluir n° 6) se referiu a Alexandre Andrade, que eu desconhecia completamente, como sendo um dos mais interessantes autores portugueses de uma geração jovem, juntamente com Gonçalo M. Tavares e provavelmente Afonso Cruz.
2. Este romance, que não descansei enquanto não tive nas mãos, começa por desconcertar. Duas primas que respondem pelos improváveis nomes de Ásia e de América, se reencontram quando a América vem viver com a Ásia em Lisboa (estranha-se, não é?) e falam demasiado correcta e prolixamente, usando termos como "relapso" ou citando um trecho inteiro de Agustina Bessa-Luís, a que vêm, o que significam exactamente? Sentimos que não somos capazes de apreciar o romance enquanto não decidimos, nestes contornos, que parte existe de ironia, ou se não será antes a tentativa de um autor canhestro nos mostrar uma realidade que, só por inépcia, lhe sai inverosímil. Bem sei, abordo o texto sob a recomendação do José Mário Silva, que prezo, e só ela me evita a precipitação.
Mas depois creio entender, pelo estilo da escrita, precisamente pelo modo excessivamente literário como as personagens usam da palavra, ou pelas personagens propriamente ditas, ou por um palpitar de quase fantástico que subjaz e cresce ao longo do evoluir da história (e até por algo tão simples como os títulos dos capítulos; reparem: "Duas aventuras de América, a segunda das quais conduz a uma terceira"), que se respeita uma matriz - e a matriz é a daquele misto de romantismo e de romance de aventuras, que do Quixote a Os Noivos, e a algumas brincadeiras camilianas, entre nós, ou até à colaboração entre Eça de Queirós e Ramalho Ortigão para jornais, procura manter o fulgor folhetinesco, com peripécias que tenham o leitor sempre preso, e conversas grandiloquentes.
E como nos livros que eu mencionava, também aqui tudo são as estranhas coincidências e os sinais incompreensíveis por que a cidade de Lisboa se vai revelando a América: o programa dela é o de descobrir Lisboa, de Nikon em punho, e de jardim em jardim. O Jardim da Estrela, o do Príncipe Real, o do Campo Grande, o Parque Eduardo VII. Perseguir as coincidências como se fossem, de facto, sinais: um homem que faz teatro de fantoches, um outro que se diria mal-educado, falando ostensiva e despudoradamente ao telemóvel, durante um concerto na Gulbenkian (mas não sem um perturbador encanto), o desconhecido que a interpela e convida para uma festa, ou aquele leitor de Apollinaire que paga um erro do passado - homens intrigantes, sob cujos movimentos se desenha o mistério de Lisboa. Já para não falar em um homem que percorre as noites da cidade, pelos telhados, em fato de borracha.
3. Insisto na ideia do modelo do "romance de cordel" (ainda que as referências reconhecidas no próprio romance -vide adiante - sejam diferentes das que enunciei) porque tudo, aqui, é maravilhosamente hiperbólico. Se lerem, por exemplo, as cerca de duas páginas em que se enuncia os diferentes pratos à espera de que as pessoas se sirvam, no banquete do Bacelar, percebem a que me refiro; se prestarem atenção à organização secreta, seus objectivos e, sobretudo, aos sinais secretos através dos quais os membros se reconhecem, confirmam que estamos no domínio de um delírio irónico e feliz. Lisboa, uma Lisboa exageradamente misteriosa e aventureira, desdobra-se aos olhos espantados do leitor.
4. Mas o melhor desta obra, é que aquilo de que acabei de vos falar não é senão a primeira parte de um romance de três partes que nos exigem bruscas mudanças. Depressa percebemos que o que julgávamos ser o romance é, como em Calvino, ele próprio uma, digamos, personagem, que teria sido escrita por uma autora, e sobre o qual um amigo dela se debruça, comentando-o numa carta em que, ao mesmo tempo, vai narrando a história da sua relação com ela. Mudámos de nível. Estamos num outro grau. A linguagem é outra, as personagens nada têm que ver com América e Ásia. E como em Italo Calvino, também o romance ficou em aberto quando se entrou no plano do meta-romance. (Na verdade, descobriremos, por alusões na carta, que a primeira história continuou, que outras personagens emergiram na vida de América, que o seu curso teve novos desvios. Apenas o leitor que eu sou, que nós somos, deixou, pelo menos para já, de lhe ter acesso a não ser indirectamente).
5. Terceira parte: mais achegas à história de América, agora de um outro ponto de vista, ou seja, ainda em segunda mão. (Na verdade, de um leitor do livro, a quem este foi furtado com a sua mochila, mas o reconstitui, comentando-o num caderninho: e, diga-se, esta ideia brilhante, mais calviniana não poderia ser). Era por isto que alguém - não sei quem, não sei onde, não sei quando, mas um crítico - se referia a este romance como o pavor de quem quer que tivesse de lhe compor uma sinopse.
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