terça-feira, 30 de março de 2021

CAMILO CASTELO BRANCO: CORAÇÃO, CABEÇA E ESTÔMAGO


 

Embora, julgo eu, tenha deixado menos leitores e epígonos do que um Eça de Queirós, Camilo Castelo Branco é um autor que a lusa intelligentsia gosta muito de referir. Se ignorarmos a parte de snobismo que possa existir nessa preferência (e porquê? porque se trata de um autor marcante pela riqueza no uso da língua, com alguma exigência de acesso ao que oferece de melhor, pelo que dá sempre bom ar mostrar-se um familiar da sua obra), é uma preferência que faz todo o sentido. A linguagem é voluptuosa. Quando nos embrenhamos, torna-se de uma deliciosa fruição. Tem espírito. Tem uma ironia completamente diferente da de Eça de Queirós, de que também gosto muito. A sua imaginação na criação da verosimilhança e no intrincar das tramas não se gastou minimamente com o tempo. O registo de um narrador em conversa com o seu leitor (frequentemente a sua leitora) consegue criar uma inconsciente vontade de crer. O narrador pode ignorar algumas coisas, ou exagerar, ou confundir, mas é tão credível como um amigo em quem confiamos.

Camilo Castelo Branco é ainda genial tanto no seu romantismo, como no modo como, para ridicularizar o realismo, que nunca professou, ter escrito alguns dos romances realistas mais incisivos.


Coração, Cabeça e Estômago, como se depreende, é um romance acerca da evolução da disponibilidade amorosa de um homem, desde os seus anos de juventude, em que o órgão que o guia seria o coração, com as suas paixões incompreensíveis, passando pela maturidade, onde o cérebro e as suas maquinações interesseiras tomariam conta dos seus actos, fazendo das relações com as mulheres instrumentos para subir na vida, até à fase em que tudo o que se pede - e encontra  - é qualquer coisa a que não sabe se há-de chamar-se amor: a ternura feita do conforto e da familiaridade, sem palidez nem poesia. O encaixarem-se, digamos, um homem e uma mulher, para o resto dos seus dias.

  O narrador e protagonista é o sr. Silvestre da Silva. Mas todo o livro aparece impagavelmente "enquadrado" por um putativo editor, que o apresenta e vai semeando, em notas, desconcertantes e críticos comentários ao modo de vida e às opiniões do sr. Silvestre. E nesta dialéctica irónica se vai desenhando um livro que, de algum modo, se destrói a si mesmo.


Num excelente prefácio à edição que reli, Gonçalo M. Tavares colhe, à obra, o seguinte trecho que tão bem ilustra como o "final das frases desmonta, quase sempre, o elevado - mas falso - romantismo dos inícios":


É certo que eu, num dos meus passeios desabridos, quando o céu afuzilava relâmpagos, fui a caminho de Sintra, e vi na balaustrada de uma varanda, com os olhos postos no ocidente tempestuoso, uma mulher, que se me afigurou a pomba da boa nova ao quadragésimo dia do dilúvio. Retive as rédeas do cavalo, sofreei a respiração, contemplei-a com petulante ternura, e ela foi-se embora.

E, com este trecho, tudo fica dito.

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