O que é extraordinário nessa traição, nessa quebra de um pacto, é a forma como ironicamente nos quer iludir, nunca o querendo, na verdade, e nunca nos iludindo: mesmo no momento em que nos é apresentado um cenário em que, aparentemente, terá início uma certa acção de determinadas personagens, se nos recusa a invisibilidade de espectadores. Parece que o cenário está a ser montado diante dos nossos olhos. E nunca podemos esquecer que esse cenário é uma escrita numa página de um livro: "Alguém olha através dos vidros embaciados, abre a porta envidraçada do bar, tudo está enevoado", muito bem!, mas não deixemos a imaginação entusiasmar-se, porque são "as páginas do livro que estão embaciadas", e "é sobre as frases que a nuvem de fumo pousa". Mesmo a apitadela semelhante à de uma locomotiva, o que é já um engano, porque provém, afinal, da "máquina de café que o velho dono do bar utiliza sob pressão", traduz até um duplo engano, porque, é claro, só existe "devido à sucessão das frases do segundo capítulo".
O que resulta desta ironia, li algures, não é um romance, mas um tratado (travestido de romance) sobre a escrita do romance, e a esta ideia acrescentaria: e sobre o acto de ler.
Se Numa Noite de Inverno um Viajante é uma das obras mais bem urdidas e aliciantes que eu já li. Em nenhum momento esta ambiguidade cessa de nos surpreender ou nos desanima. É um jogo de espelhos: porque, evidentemente, o leitor que eu sou no livro, não é o leitor que efectivamente sou; trata-se ainda de uma personagem, de uma ficção, com a qual só me confundo como a criança que finge ser um soldado, ou um cóboi ou um índio, acreditaria realmente ser esse soldado, ou esse cóboi ou esse índio. Aliás, observem que o leitor, que seria eu, nem sequer tem direito ao eu - o pronome é, desde o primeiro momento, usurpado por uma personagem que, numa gare, se me dirige a mim, leitor, na sua qualidade de ser fictício, qualidade de que está perfeitamente consciente. Ouvimos (ou lemos) esse autodenominado "eu", sobre o qual não se conhecem outras características - mas que não é o autor, nem é, como vimos, o leitor - e nos vai explicando o que faz no texto, num texto literário, num romance. Porém, esse eu que não eu desaparece (teria havido uma troca com um outro romance durante a encadernação do livro, na tipografia, de modo que aquela não é a história que compráramos) e o leitor regressa à livraria, onde acaba apaixonando-se por uma jovem na mesma situação: os motivos pelos quais saltamos de um quadro para outro são, no fim, a própria história. Em cada novo quadro, em cada princípio de uma nova história, totalmente diferente da anterior, apresenta-se-nos um outro "eu", que nunca é o autor, nunca o leitor, e nada tem que ver com o eu do quadro anterior.
Por sua vez, cada quadro segue, rigorosamente, um modelo narrativo próprio: ora o romance de aventuras, um policial, digamos, ora um romance como Guerra e Paz, com as dificuldades típicas, para um não-russo, da leitura de um romance russo - os nomes que não fixamos, e são usados de modo diferente, as personagens excessivamente fogosas (sendo que, como descobrimos, não será um texto russo, mas polaco, e afinal não polaco, mas cimério, e porventura não cimério, mas..), ora um romance no tom confessional dos diários, e por aí adiante.
Sonhei com isto. Literalmente. Sonhei que Italo Calvino respondera: "O romance conseguido é o que da unidade vai extraindo múltiplas e diversas partes, até regressar à sua unidade."
É uma boa definição de um livro maravilhoso.
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