segunda-feira, 14 de junho de 2021
ARTURO PÉREZ-REVERTE: CÃES MAUS NÃO DANÇAM
Quando era menino, ouvia com muito gosto as fábulas que a minha mãe me contava. Ela decorara trechos inteiros de traduções, para português, de poemas de La Fontaine. Evidentemente, assim que aprendi a ler, não empreguei propriamente a nova "competência" para ler fábulas. Atirei-me às Aventuras de Os Sete e Os Cinco e ao Júlio Verne. O interesse pelas fábulas desvaneceu-se. Era, aqui e ali, reacendido. Aproveito para, por exemplo, convidá-los a seguir a série Grimm, que nos traz uma espantosa reinterpretação (no género fantástico) do que são as fábulas dos Grimm.
Em adulto, apesar de ser um grande amigo dos cães e um fervoroso adepto da Causa animal, reagi como se reage a todas as pragas. Detestei romances narrados por cães e por gatos e afastei-me deles, como quem se afasta, higienicamente, de uns autores manhosos, que escreviam para um nicho fácil, acabado de encontrar.
Isto dito, tratava-se, neste caso, de um livro "de" cães (nunca percebemos se é para imaginar que o escrevem, ou se pensam em voz alta para nós...) escrito por Arturo Pérez-Reverte, que, quando desliza, pode ser consideravelmente fracote (O Franco-atirador Paciente), mas, quando é bom, é francamente bom (Os Homens Bons e tantos mais).
Assistimos, aqui, a uma tentativa de assumir o ponto de vista autêntico, sem moralismos, de um cão. Um cão é machista e pode tornar-se violento, a ponto de matar um outro, débil, para salvar a própria vida diante de homens que os põem a lutar. E esta visão da natureza dos cães, na sua relação ambígua com os humanos, de que percebem pouco e cuja linguagem não conhecem - entendem mais o "tom" do que o conteúdo- seria brilhante, quanto mais não fosse pela novidade, se, paradoxalmente, o narrador, Negro, um antigo cão de lutas, entretanto libertado e hoje em busca dos seus amigos desaparecidos, não caísse na tentação de comparar a amoralidade canídea com os moralismos hipócritas dos humanos, ou tecer comentários acerca do "politicamente correcto" que não é um critério canino. Assim, precisamente a forma a que o romance de Pérez-Reverte parecia escapar, a pregação de uma moral humana em nome dos cães (e tomando-os como personagens), acaba sendo uma armadilha em que rapidamente cai.
Páginas, porém, de grande violência (humana, naturalmente) dialogam com outras de uma enorme emotividade, na descrição da fidelidade dos cães (relativamente às pessoas ou entre si) e da infidelidade do homem em relação ao cão.
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