segunda-feira, 12 de julho de 2021
JULIETA MONGINHO: VOLTA AO MUNDO EM VINTE DIAS E MEIO
Começo por saudar todos os autores portugueses que, como Julieta Monginho, continuam, em tempo de pandemia, arriscando na sua escrita. Vende-se provavelmente muito menos, alguns escritores experimentam outros recursos (cursos de escrita on-line, por exemplo, e não me passa pela cabeça pôr em causa a legitimidade da diversificação de caminhos para a sobrevivência de quem tem sido tão maltratado) e suponho que, em matéria de romance, a regra seja fazer e publicar romances "vendáveis". E todos sabemos o que significa isso: baixar a fasquia, piscar o olho a todos os tipos de público, namorar com o mainstream.
O que defendo não é que se faça necessariamente o contrário: escrever para a elite, de forma imperscrutável, ininteligível, em autênticas masturbações intelectuais. Mas que se mantenha a qualidade, se evitem as cedências, e não se tenha medo do que não se lê à primeira e dá trabalho, parece-me corajoso e de saudar. É o caso.
O início é um choque. Personagens fortes, interessantes, em situação e relações que não compreendemos, porque delas nos são apenas oferecidos indícios. Ou seja, começamos pela incompreensão que, no entanto, nos magnetiza. A partir deste quadro que não existe, ou de que há insuficientes pinceladas, vamos recuando: e nessa viagem por onde JM nos conduz, sem pressa, como no gozo da lentidão que o verdadeiro conhecer e o verdadeiro compreender requerem, as personagens ganham espessura e, sobretudo, as relações entre elas tornam-se nítidas, os equívocos em torno da homossexualidade ou heterrossexualidade daqueles com quem convivemos neste tempo de leitura, e sobre de quem é filho Leo, o menino que seguimos (e em que situação foi concebido), clarificam-se; o fio dramático e narrativo aviva-se; a situação desta pequena comunidade de dois homens que se amam, uma mulher amada e um menino que, de algum modo, é de todos, mas ao mesmo tempo provoca entre eles a cisão (emotiva e literal), torna-se a situação em que vivemos também, como espectadores incapazes de distanciamento.
No confronto entre as suas duas naturezas, a de viajante, no fundo fugindo de si, e a de português a que nunca conseguiu fugir, Mário regressa ao seu Alentejo, a tempo de um reencontro com a mãe, com as memórias, confusas, confundidas, e com um pequenino pintaínho, no cenário épico de uma tempestade que parece devolver a terra à sua condição aquática original. Trata-se de os salvar: de se salvar, salvar a velhinha que o não reconhece, ou acrescenta, à memória que Mário tem do passado, o que lhe parece nada ter que ver consigo, e ele julga referir-se a alguma outra pessoa. É extraordinário. É um trecho dolorosamente maravilhoso num romance sublime. Nem é bem um trecho, é uma corrente, um dos fios contínuos do romance. É, ele mesmo, um fio sublime no tom simultaneamente rústico e surreal que nos faz ouvir: a mãe que, sobre um móvel que as águas não alcancem, se sente rainha do mundo, os nomes e as lembranças que lança e em que Mário se não reconhece, as lembranças em que o próprio Mário já não pode ajustar contas com o pai, ou perdoar-lhe, ou, quem sabe, pedir-lhe perdão; do pastor que o iniciou, dos homens que o usaram; o presente, o pressentimento do futuro, o pinto calçudo, o barco que tem de ir buscar, a nado, ao automóvel que a enxurrada afastou...
Mas agora, põe-se outro problema. Esta viagem de Mário, simultânea e, na minha óptica, tão fulcral no romance como a fuga de Leo, acontece de que modo? Em que dimensão? Porque ele há factos, ele parece haver factos, a que, aliás, os nossos hábitos "realistas" de leitura se agarram desesperadamente. Porém, a partir de certo ponto, mesmo os factos se confundem com a fantasia, o real com o irreal, o possível com o impossível, as figuras dos quadros do museu interferem, apresentam-se, dialogam, e não somos capazes de fazer caber nas nossas grelhas aquele mundo fantástico, que não esperávamos a tal ponto, e contra o qual resistimos até onde podemos. E podemos pouco, porque tudo nos fascina.
A linguagem é uma outra abençoada dificuldade. Uma prosa poética que não vem para facilitar a vida ao leitor, mas para o encantar, antes de mais, para o banhar na sua beleza, convidando-o a que se perca, e reencontre, numa navegação sem bússola, exigindo uma leitura que seja a sua única orientação.
Há muito não lia um romance tão corajoso e tão completo: no que nos pede, no que nos dá.
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