O que parece que em todos os comentadores caiu mais fundo nesta obra foi a experiência da insularidade e de quanto, no arquipélago, marca os seus habitantes, sofridos, temerosos e resilientes (oh! meu Deus, sabia que um dia me custaria evitar esta palavra), e é claro que esse carácter é, aqui, ensurdecedor. Mas, se não se importam, gostaria de começar por outro lado. Os diálogos.
Desde há muito que farejo, nos diálogos de um romance, um critério de qualidade. Em discurso directo ou indirecto, ou entretecendo um misto, como em Saramago e em Bassani (ah, em Bassani existe uma forma curiosa, a que chamaria "quase-directo"), ora longos e prolixos, como nos franceses e nos piores autores portugueses, ora curtos e realistas, como nos norte-americanos, a forma de pôr as personagens a falar entre si é reveladora. Não detestam também aquelas que peroram literariamente? Bem. Grandes escritores caem nessa tentação. Conrad, por exemplo. Mas é outra coisa: o que eles aí tentam é o mesmo que a ópera. Não tanto manter a credibilidade, e sim dar azo ao prazer meramente estético da melodia e da retórica. Divago. Voltemos ao ponto: conseguir pôr pessoas a falar como se as estivéssemos, de facto, a ouvir falar, é difícil. Exige um trabalho de cortar o que se gostaria de manter, mas ninguém usaria oralmente. Joel Neto é um dos poucos autores portugueses que o conseguem. Com simplicidade. Sem artifício. Lemos e estamos a ouvir.
Mais do que isto, há, em Neto, um domínio eficaz da história e dos recursos para a tornar interessante, que alguns escritores portugueses da nova geração mostram - mas não todos. A percepção de que um romance não se reduz à linguagem, ou não tem de apenas o ser, mas implica a narrativa, a acção, as surpresas, o suspense. Os Tordo ou os Hugo Gonçalves, por exemplo, procuram esse contar visível, cinematográfico (e não uso levianamente a palavra. Trata-se de, precisamente, ter visto muito cinema ou ter escrito para cinema). Um romance de Joel Neto tem, também, essa narratividade.
Em Arquipélago tudo principia, na casa que pertencera ao avô e em que José Artur quer fazer obras, com a macabra descoberta dos ossos que formariam o esqueleto de uma criança. Uma menina. José Artur sabe quem é: quem mais senão a rapariga que, na sua infância, após um terramoto, viera viver com eles, na casa que o avô recomeçara então a construir? Quem senão Elisabete, companheira de aventuras caída do céu? Porém, o que revelaria, tantos anos volvidos, o surpreendente desenterramento das ossadas? Será que se desenterrava, ao mesmo tempo, o crime do avô? O que acontecera realmente? E o que saberemos do que aconteceu?
Por outro lado, José Artur, professor pouco entusiasta de História, regressara aos Açores com outro objectivo: o de usar, para a sua tese de doutoramento, que tarda, uma ideia, uma crença, digamos. A de que certas manifestações culturais - associadas aos monumentos funerários que encontrará junto a uma pequena povoação, na "Grota do Medo" -, para que o haviam despertado algumas cartas, muito antigas, de um viajante inglês, casualmente descobertas numa escrivaninha que tinha comprado, e onde se referiam estranhos e assustadores costumes no interior de uma das ilhas do arquipélago, justificariam a defesa da suspeita de que teria existido um povo muito anterior aos que a História rastreou, quem sabe se de uma ilha desaparecida: aquilo para que, durante a investigação, guardará o nome impreciso e simbólico de "Atlântida".
E é neste cruzamento de factores em que José Artur se encontra no retorno aos Açores, promissor académico hoje caído praticamente em desgraça, entre um filho que talvez não seja demasiado tarde para recuperar, uma senhoria por quem se sente secretamente apaixonado, a tese em que é o único a crer, a memória do avô e da criança que ele talvez houvesse matado, que se prepara um romance acerca de um homem que não sente os sismos - por simbólico que possa ser essa peculiar "insensibilidade", talvez a parte mais fantástica e escusada no romance.
Concluo também com o que, em todos os comentadores que tenho lido, se tornou consensual, relativamente à obra de Joel Neto e a este romance em particular: a afirmação de uma escrita e de uma visão que, de Vitorino Nemésio a João de Melo ou a Onésimo Teotónio Almeida, desenhou e reteve a singularidade solitária da sensibilidade açoreana. Em Arquipélago, desde a descrição da paisagem e dos sentimentos que ela evoca, ou à iminência do sismo, com que cada um vive sempre, e ao sotaque de pessoas cuja fala brusca é, porventura, uma forma de fechamento, até à referência detalhada aos pratos, aos alimentos, à sua importância, tudo são sinais de um outro sentido, de um outro sagrado, de uma verdade dificilmente transmissível.
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