quarta-feira, 30 de junho de 2021
BRUNO VIEIRA AMARAL: INTEGRADO MARGINAL
Terei escrito alhures, uma vez, que a biografia era um género que não me encantava. Nas várias excepções que então apontei, já se percebia que não seria propriamente verdade.
Tenho lido - e procurado, o que é um dado novo - algumas biografias. Há autores portugueses escrevendo muito bem sobre a vida de outros escritores portugueses - do O'Neill, da Agustina e, agora, do José Cardoso Pires -, para além de uma biografia interessantíssima, mas, essa, da autoria de um inglês, acerca do Dr. Pozzi. Fica a promessa de um próximo voo sobre O Homem do Casaco Vermelho. Para já, move-me Integrado Marginal. Bruno Vieira Amaral investigou minuciosamente o homem que procurara, toda a vida, equilibrar-se nessa tensão entre a integração e a marginalidade (veremos, adiante, se podemos ser categóricos a esse respeito), Cardoso Pires, e a sua época, e o resultado é um monumento de 561 páginas (mais anexos), que se lê deliciadamente.
Lê-se deliciadamente, em primeiro lugar, porque Cardoso Pires é apresentado na sua circunstância e no seu tempo: principiando-se com uma breve, mas indispensável, incursão à vida do pai, que em vão desejou ver o filho a seguir-lhe os passos na marinha, e uma quase apenas sussurrada referência à religiosidade da mãe, que José Cardoso Pires abominava, o livro de BVA põe-nos diante dos olhos um pouco incrédulos o Portugal que, a partir dos finais do século XIX (quando nasceria o pai do biografado) vagarosamente vai evoluindo até aos anos do salazarismo e ao tempo da Guerra; os anos cinquenta e sessenta, já com o jovem Cardoso Pires iniciando a sua carreira literária num meio tacanho, as suas amizades de relativa boémia (Luiz Pacheco no liceu e, episodicamente, mais tarde; Alexandre O'Neill, Cesariny ou o delirante Luís de Sttau Monteiro, incapaz, ao que parece, de não entretecer deliberada e continuamente a verdade e a mentira nas histórias que relata aos seus amigos), a filiação no Partido Comunista Português, a importância do partido em Portugal ou o reforço da desconfiança, da vigilância e da perseguição aos intelectuais por parte do Estado Novo, através da polícia política; ou a candidatura de Norton de Matos e, anos mais tarde, a do General Humberto Delgado, com a energia que despertou e a frustração subsequente. Ou seja, é também a biografia de uma época do país, sobretudo literária e culturalmente, mas também política, jornalística ou economicamente.
Por outro lado, o esforço de pesquisa do autor, incansável e detalhada, não transparece, devido à opção de não fazer o leitor tropeçar em notas de rodapé, como se se tratasse da leitura de uma dissertação académica. As notas, profusas e rigorosas, existem, mas no fim. A leitura faz-se, portanto, fluidamente, como a de um romance, porque a escrita é elegante e nos capta.
Neste meio, desenha-se a figura de Cardoso Pires, das irascibilidades que o levam, em transportes de indignação, a cenas de pugilato, da sua insegurança a propósito da própria qualidade do que escreve, da relação com Edite, sua companheira (mais do que apenas "esposa"); podemos discutir - tem-se discutido - o ponto de vista do biógrafo. Até que ponto toma partido (por exemplo, a respeito daquela espécie de inimizade entre Cardoso Pires e Saramago); ou - faz parte da mesma crítica de que tenho seguido ecos - se, por exemplo, a ideia de Cardoso Pires como um "integrado marginal", de que o título do livro dá conta, não seria também uma tentativa de dotar de um carácter rebelde um escritor que, desde cedo, se tornou um perfeito "integrado" no meio literário português, bajulado e premiado pelas sociedades e ambientes que contam (não integrado no Estado Novo, é claro). Mas, em boa verdade, essa discussão soa-me a um tanto espúria. E a biografia permite-nos agarrar o homem complexo, ambíguo, cioso de se ter segundo uma certa ideia de virilidade (os libertinos como modelo, ou Hemingway), e o maravilhoso escritor de O Delfim e da Praia dos Cães.
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