quinta-feira, 14 de outubro de 2010

À ESPERA DE CHOLOKHOV

Em Rússia Show, blogue de uma recente leitora do Profissão: Leitor, descobri a referência a Mikhaïl Cholokhov. Os textos de Milú, entusiastas e entusiasmantes, fizeram-me partir imediatamente em busca deste autor, Prémio Nobel, contudo relativamente pouco conhecido em Portugal.

Lembro-me de que a Europa-América (ou seria a Bertrand?) tinha editado, há muitíssimos anos, o romance O Don Tranquilo, em diversos volumes. Está esgotado. Encomendei a tradução no português do Brasil, que se chama O Don Silencioso. Aguardo-a.

Mas esta ligeira discrepância faz-me temer a tradução. A Milú, minha leitora, familiar com a língua russa, traduziria o termo do título por «tranquilo», ou por «silencioso»? E conhece a tradução da Ed. Record? Recomenda-a?

terça-feira, 12 de outubro de 2010

E ASSIM TERMINA O DESAFIO. FORAM OS MEUS 10 LIVROS EM 10 DIAS

10º dia.

10ª: Qual o livro mais velho que tem ou já leu?

Pertenceu a minha mãe; quando comecei a vasculhar estantes, esse livro já existia em nossa casa há muitos anos. Recentemente, reencontrei-o e trouxe-o comigo. É, curiosamente, uma peça de teatro. Não estamos a falar da obra mais «antiga» que já li (seria a Odisseia ou a Ilíada, naturalmente), e sim da edição mais «velha» que já me passou pela mão. Este volumezinho é dos anos quarenta.

The Winslow Boy, de Terence Rattigan.

Suponho que nunca foi traduzido: usávamo-lo para treinar a leitura do inglês.

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

VLADIMIR NABOKOV: DESESPERO

Era Wladimir Nabokov um jovem de 33 anos quando escreveu e publicou este romance, originalmente em russo. Ou seja: tão longe ainda da sua maturidade literária - se nos lembrarmos de que terá já 56 anos aquando da edição de Lolita, sua obra maior e perfeita - e, todavia, em Desespero, exibe já todos os indícios do seu talento, como sementes inatas. Aliás, a vários títulos, Desespero prenuncia Lolita: para já, na construção do narrador/protagonista, que, aliás, se chamava, no primeiro, Hermann Hermann (rascunho do célebre Humbert Humbert, do segundo): nos dois casos, uma personalidade doentiamente cheia de si, sem escrúpulos, no limiar de uma sinistra loucura. Porém, sobretudo na escrita, no estilo, no domínio da síntese, na elaboração de frases muito tensas, que são, frequentemente, verdadeiros achados, momentos inesquecíveis de leitura, adivinhamos, no jovem Nabokov, o génio em que Nabokov se tornará.

Numa descrição, Hermann emprega, inadvertidamente, uma palavra que detesta. Não por razões estéticas, mas psicológicas. Porque lhe desperta estranhos e fundos fantasmas, labirínticos e infinitos pavores. É a palavra «espelho». Quando dá conta dessa intromissão, interrompe o que vem contando, fala do significado que os espelhos têm para a sua mente distorcida, ensaia uma breve psicanálise. Depois, quer reatar, zanga-se com os leitores, acusa-os: «É difícil falar se nos interrompem constantemente». Esta passagem ilustra o humor de Nabokov, que me é tão caro.

É um humor que está presente na própria forma da escrita. Trata-se, de algum modo, do texto de um louco. Isso justifica, em parte, o seu carácter de meta-texto: Hermann questiona-se, a cada passo, acerca do que está escrevendo, põe em causa as palavras que escolhe, arrepende-se, propõe-se riscar períodos inteiros, decide não o fazer, embora deixando claro que estão errados e que não exprimem o que lhe interessava dizer: quem domina o acto de escrever não é já a sua razão, mas a memória, a cuja incapacidade pede constantemente contas. O terceiro capítulo, por exemplo, inicia com esta auto-interrogação: «Como começaremos este capítulo? Proponho diversas variantes para escolha.» E apresenta-as, uma por uma, pondo-as em confronto e distanciando-se criticamente de todas elas.

Ou seja, sob pretexto de um diálogo com o leitor, este romance é, fundamentalmente, um diálogo do narrador consigo mesmo - inquieto, sarcástico, manipulador, jogando com os dados a seu bel-prazer, afundando-se no negrume do seu inconsciente e debatendo-se com a cisão entre ele e si mesmo. Aquele outro, com que se encontra, poderá ser um homem igual a si? Ou trata-se de si separado de si? O tema do duplo é, como se vê, um excelente pretexto (e típico de Nabokov, que o retomará em O Olho) para uma narrativa delirante: o leitor perguntar-se-á se está simplesmente a ser enganado; se o narrador se mantém fiel a uma realidade estranha, porventura inverosímil, porém factual; ou se não será no âmago da sua mente conturbada que se encontra a justificação para aquela aparição especular.

É um romance fácil? Não é um romance fácil. As interrupções daquele monólogo que se apresenta como em fase de rascunho, com interrupções, regressões, auto-imprecações, por engraçado que seja, cansa, impede a progressão? Sem dúvida. Mas não deixa de ser curioso observar que alguns dos romances mais interessantes que se escreveram são romances que não progridem. Que se interrogam indefinidamente. E que, nessa auto-interrogação, recuam sobre si.

9º DIA, 9ª PERGUNTA E UMA VIAGEM À INFÂNCIA

9ª pergunta: Qual a série de livros de que mais gosta?

Esta pergunta é ambígua. Que se entende, precisamente, por série de livros? Uma colecção, por exemplo? Uma obra em vários volumes (como Em Busca do Tempo Perdido, como Guerra e Paz?)

Lembro-me de uma série de livros de Júlio Verne. Gostava de uns, gostava menos de outros. Mas essa «série» está enraizada nas memórias da minha infância. Mais tarde, os «Sete» raptaram-me a atenção. Opto por estes.

Série O Clube dos Sete, de Enid Blyton

(E todas as séries de Enid Blyton).

domingo, 10 de outubro de 2010

8º DIA

8ª pergunta:

Que livro menos recomenda?

Então, escolhamos uma resposta imprevisível. Mas honestíssima. Um dos livros que menos recomendo, talvez o que menos tenha recomendado é, contudo, um livro de que gosto muito, de um autor russo, que principiou a escrever em inglês relativamente tarde, o que o não impediu de se transformar num mestre da língua inglesa. O seu poder de síntese é extraordinário; o domínio da alusão e da metáfora devem ser objecto de uma contínua aprendizagem por parte de aspirantes a escritor.

Refiro-me a Lolita, de Vladimir Nabokov.

Por que o não recomendo? Por um par ou por um terceto de razões óbvias. Porque tenho medo que me interpretem mal. Porque vivemos num tempo em que, mesmo na literatura, os tabus são cultivados. Porque é politicamente incorrecto e talvez até eticamente repreensível gostar desta obra. É mesmo? Claro que não. Mas, pelo sim pelo não, e porque as pessoas são muitas vezes patetas, evito recomendá-la.

sábado, 9 de outubro de 2010

ISAIAH BERLIN: «O OURIÇO E A RAPOSA»



Já tive oportunidade de garantir que o termo "preparação" seria, neste caso, um termo excessivo. Mas a verdade é esta: com o objectivo de realizar uma palestra, na Biblioteca, para comemorar o centenário do falecimento de Tolstoi, tenho andado a reler, com um cuidado especial, Guerra e Paz. Ao mesmo tempo, procurando uma rede de informações acerca desse romance e desse autor, voltei a desaguar numa obra de Sir Isaiah Berlin, A Apoteose da Vontade Romântica: uma série de ensaios no seu inglês luminoso, espirituoso, muito vivos e subtis, conduzidos por uma inteligência política aguda e por uma cultura vasta e heterodoxa. Um desses ensaios, bastamente citado, aliás, é «O Ouriço e a Raposa», acerca da visão que Tolstoi tem da História.

O título, que sempre me intrigara, remete para um verso do poeta grego Arquíloco: «A raposa sabe muitas coisas, mas o ouriço sabe uma coisa muito importante.». (Infinitos são os astuciosos recursos da raposa; o ouriço, em contrapartida, não tem senão um único: concentrar-se sobre si, esperando que o inimigo se magoe nos seus espinhos...)
Dando um sentido específico a esta distinção, Isaiah Berlin considera que alguns escritores seriam escritores-raposa e, outros, escritores-ouriço. A ideia é, de facto, curiosa.

Entre os escritores-raposa, ou seja, aqueles que sabem muitas coisas, irrequietos e velozes, os que tendem a dispersar-se em inúmeras personagens e temas, aqueles cujos livros nunca se parecem uns com os outros, aqueles cujos interesses se fracturam irreconciliavelmente, poderíamos referir homens como Montaigne (por causa dos seus maravilhosos ensaios em que, a pretexto de falar unicamente sobre si próprio, se reparte por temas como as mulheres, a educação, a amizade, os livros ou o corpo); ou, por exemplo, Jean-Paul Sartre (que da filosofia ao romance e ao teatro, dedicando-se também à biografia, à auto-biografia e à política, não deixou um só instrumento por tocar). Por outro lado, entre os escritores-ouriço, aqueles que sabemos que, por muito que escrevam, não escrevem senão acerca de uma única verdade, procurando recorrentemente unificar, sob a força de gravidade desta, tudo aquilo em que põem o dedo, estaria Hegel, estaria Ibsen.

É interessante pensarmos nos escritores que prezamos, sob este ponto de vista. Eça de Queirós, diria eu, é um ouriço. Gonçalo M. Tavares, sem dúvida, também. Nuno Ramos é uma raposa. Fernando Pessoa é o rei das raposas.

Alguns, não sei. Sophia? Whitman? Proust? (Berlin considera-o um ouriço, e eu, inseguro, divirjo: embora compreenda a razão...). Julgo que o problema se deve a que podem ser simultaneamente uma ou outra coisa, num ou noutro aspecto ou consoante o critério; ou ser uma coisa, sob a aparência de uma outra.

Seria, segundo o próprio Berlin, o caso de Tolstoi, que, assumindo-se a si próprio como um ouriço, até pela concepção de História que expõe em vários ensaios, no entanto, ao criar, cria como uma raposa. Isso explica, de resto, o carácter fragmentário, intrinsecamente "desunido", de Guerra e Paz. Se se torna praticamente impossível reduzi-lo a uma narrativa linear, é porque é uma visão da guerra enunciada num texto que se funda, de certa forma, numa guerra interna. Gravitamos ao redor de diferentes famílias russas, e cada uma dessa famílias é um universo em expansão e em choque com os demais. Verdades, sentimentos, interesses contraditórios se combatem, a partir de perspectivas múltiplas, que se não fundem nem coincidirão. Fala-se, num mesmo capítulo, se não numa mesma página, em russo, em francês ou em alemão; passa-se do fervor religioso para uma euforia da liberdade; da paixão para a melancolia.

A alma russa apresenta-se, ali, em todas as suas cintilações e possibilidades, mas com um grau de intensidade que, como afirma Rogério Casanova, é sempre extremo: tanto na alegria como na dor, tanto no amor como no ciúme. É o texto de uma raposa, claro.

7º DIA: ACERCA DE PROUST E NÃO SÓ

E eis-nos chegados ao 7º dia de um desafio que me pareceu estranho e curioso. Se uma lista é sempre uma série de reduções (tenho consciência de que, por cada livro escolhido em cada um dos dez dias, há centenas de possíveis outros que elimino), não deixa de ser também verdade que cada escolha tem, subjacente, uma história ou uma razão (que resumo); e que, no conjunto, os dez livros formarão uma Gestalt, uma forma própria, um conjunto que me revela: é, sob o modo de uma minúscula biblioteca de livros que se complementam ou repelem, uma expressão do que eu próprio sou como leitor.

7ª pergunta: Que livro mais recomenda?

Não posso responder intemporalmente. Em diversas fases da minha vida, em diferentes momentos de descoberta e paixão, recomendei, obviamente, diferentes livros.
Porém, se quiser assentar sobre o livro que mais recomendei nos últimos meses, a resposta será:

Proust era um Neurocientista, de Jonah Lehrer.

Apesar do título, Lehrer não fala unicamente acerca de Proust. Fala de Withman (atenção, Beatrix!), de Virginia Woolf e de muitos outros criadores (na poesia, na música, na pintura, na culinária até) do ponto de vista daquilo que, na obra de cada um deles, era, artisticamente, se assim podemos dizer, uma antevisão de algum conhecimento que a "neurociência" mais tarde confirmaria.

Recomendei, emprestei, indiquei.

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

PRÉMIO NOBEL 2010


Não vejo mal algum em que o Prémio Nobel seja, frequentemente, uma mera eleição política. Até certo ponto, compreendo e aceito que há áreas onde o reconhecimento que um tal prémio confere se torne o objectivo a ter em conta, condicionando a escolha, de maneira que esta possa vir a ser usada como manifesto, forma de consciencialização ou de pressão. Poderia o Prémio Nobel da Paz, por exemplo, deixar de ser um modo de intervenção política? Podia a sua escolha ser inocente? Não haver sido planeada com o intuito de dar força a um projecto, ou de obrigar um regime a mudar (pense-se nos prémios recebidos por Arafat, Peres, Rabin, Ramos Horta, Obama ou Liu Xiaobo)?

No caso da literatura, é claro, a politização do prémio torna-o ambíguo e, em última análise, irrelevante. Não porque a literatura não seja política. Mas porque o é num outro sentido: não como refém das urgências do tempo, dos interesses e maquinações de grupos, da defesa de minorias ou do ataque aos regimes corruptos. Porque, enquanto subordinada, em primeiro lugar, a uma visão política, a literatura diminui, desvirtua-se, abrevia-se. Reduz-se: a um texto de propaganda, a um instrumento pedagógico e didáctico, a uma condicionadora de mentalidades.

Temo que, em diversas momentos, o Prémio Nobel de Literatura funcionasse como uma chamada de atenção, valesse como uma negociação para impor o autor que melhor representaria um ideal ou uma virtude. E, por isso, não tenho dúvidas de que se escolheram escritores menores, escritores menoríssimos, considerados , todavia, a voz «necessária» do Zeitgeist.

Em nome dessa perspectiva politicamente correcta, Jorge Luís Borges nunca foi agraciado, nem poderia tê-lo sido. E quem se atreveria, por exemplo, a propor um homem como Ferdinand Céline, raivoso anti-semita, repugnante colaboracionista e também - já agora -, um dos maiores escritores da língua francesa?

Postos estes dois exemplos, várias vezes a atribuição do prémio me surpreendeu. Sucedeu quando calhou a vez a Saul Bellow - homem não especialmente de esquerda, bem pelo contrário. Ou a V. S. Naipaul, que dificilmente se quadraria nos critérios estreitos e estritamente ideológicos a que o Nobel nos habituara. Ou, como agora, em 2010, a Vargas Llosa, odiado por todas as esquerdas pelas suas opiniões, pelos seus artigos, pelas suas cumplicidades, pelos seus desprezos.

Gosto muito dos livros de Vargas Llosa. A Cidade e os Cães, que talvez venha em breve a comentar, é certamente o meu preferido. Posso dizê-lo. Di-lo-ei sem ter de me sentir minimamente comprometido com as posições políticas de Mário Vargas Llosa.

E, portanto, congratulo-me com este prémio que, do ponto de vista literário, é muitíssimo justo.
E congratulo-me pelo facto de o Nobel - independentemente de escolher quem pessoalmente me agrada, ou não -, ser capaz, ainda, de uma escolha que me desorienta: que desmente e se não cinge aos critérios pobres de que o acusava.

6º DIA

dia, 6ª pergunta: Que livro menos lhe prendeu a atenção?

Lembro-me de um, entre outros candidatos ao desonroso lugar. Requisitei-o na Biblioteca da minha escola. Que raio me terá feito escolhê-lo, entre outros, tão bons? Talvez a capa dura, típica das obras do Círculo de Leitores. Talvez o título. Talvez o nome do autor, que me era desconhecido, mas não completamente, transmitindo-me, nessa indefinição, a ideia de que se trataria de «um autor a conhecer». Ora, não sei, não me recordo. Em suma, trouxe-o.

Chama-se O Plano Perfeito, de Sidney Sheldon.

Andei dois ou três dias com ele na pasta. Reiniciei-o várias vezes. Devo ter acabado por chegar a metade do todo. Era vazio, insípido e em nenhum momento de nenhuma linha de página alguma me aqueceu ou me arrefeceu. Nenhuma ideia me fez parar ou pensar. O que li, li como um autómato. Ou não propriamente como um autómato porque, interiormente, ia pensando em outras coisas, planeando passeios ou visitas.

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

E NO 5º DIA, UMA 5ª PERGUNTA

5º dia, 5ª pergunta.

5ª: Que livro mais lhe prendeu a atenção?

No fundo, a resposta é sempre insuficiente porque, em rigor, o livro que mais me prendeu foi, também, o de que mais gostei - ou seja, em síntese, Proust, Proust, Proust, o omnipresente Em Busca do Tempo Perdido. Mas para não dar uma resposta única, posso sempre assumir que, não contando com esse - que estará sempre subjacente, mas é outra coisa, todo um outro universo -, então o livro que mais cativou a minha atenção, ou - noutro sentido - mais exigiu da minha atenção, foi:

Crítica da Razão Pura, de Imannuel Kant.

Não foi, sequer, da obra de Kant, o livro que mais me interessou. Ou mais me marcou. Não. Foi aquele em que cada período pediu absolutamente todos os recursos da minha atenção.

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

ACERCA DOS MEUS LEITORES

Quando iniciei este blogue, não tinha outro objectivo que não descobrir um território onde pudesse escrever sobre livros. Não à maneira de um crítico, mas à maneira de um leitor, ou seja, de um sujeito embrenhado no acto de ler, com as suas preferências injustas, as suas impressões infundadas, as suas impaciências, ignorâncias, futilidades, falibilidades.

Não contava com uma especial afluência de visitantes. No entanto, aos poucos, e por mero acaso, fui sabendo de pessoas que me seguiam; de algumas que faziam, da vinda a este blogue, uma espécie de passeio higiénico: uma rotina saudável. Não me perguntem porquê, não saberia explicá-lo. O certo é que aconteceu. Tive o prazer de descobrir que, nos longínquos EUA, o meu primo não perdia a maioria destes posts, e levava a sério algumas recomendações; percebi que, no Brasil e em Portugal, atraía, como por magia, gentis e afáveis leitores, cada um com o seu próprio blogue - sobre literatura, sobre psicanálise, sobre media. Cruzei-me, entretanto, com jovens que haviam sido outrora minhas alunas, e me adicionavam, e me acompanhavam as leituras.

De modo que fui entendendo como, por algum ignoto motivo (que deverá mais a certa conjunção astral do que a qualquer mérito meu), juntava, ia juntando, juntei, sem plano ou know-how, um grupo de leitores talentosos, cultos, de qualidade. (Muitos, quase todos). E, neste momento, sinto-me eufórico com o grupo de seguidores que, aliás, vem paulatinamente aumentando. Habituei-me às suas fotos, aos seus ícones, aí na margem esquerda desta página. É um conjunto mais-que-perfeito. Até aquele certo jovem que me não lê: um sujeito que, colando-se-me ao blogue, não pretendia senão usá-lo como publicidade. Queria que votassem nele para o Big Brother Brasil, seja lá isso o que for! Bem: se um dia esse seguidor se fosse embora, se a sua foto desaparecesse de lá, a sua ausência trar-me-ia saudades...

E assim nos fomos familiarizando. Agora, um comentário inesperado pôs-me diante de Isabel, com a sua poesia, que, serpenteando em redor de objectos queridos - fictícios ou não, como sabê-lo?, os seus livros, a sua música, a sua sala, a sua varanda, as suas flores, o seu gato, os «remendos» a que se dedica... -, constitui um mundo no interior do qual tudo se move subtilmente, como num jogo de espelhos; e nada é o que parece, ou nada é só o que parece, mas símbolo, mas metáfora, mas alegoria de algo mais: como se, sob o mundo íntimo que se nos vai desenhando, suspirasse um outro mundo, uma outra vida, uma outra verdade.

Portanto, nesta altura - sou totalmente sincero -, tornei-me tanto leitor dos meus leitores quanto eles são meus leitores. Sinto-os respirar. Nunca este blogue fez tanto sentido. Nunca, como agora, sentar-me a escrever foi um acto tão pleno e tão consciente de comunicação. Muitas vezes são silenciosos, meus leitores. Raramente comentam, mas estão lá. Sinto-os, vejo-os. Ou não os vejo, mas prevejo-os, não os sinto, mas pressinto-os. Esperam-me. De algum modo, sei-o.

E ESTAMOS NO 4º DE UM TOTAL DE 10 DIAS

4º pergunta: Qual o livro mais caro que já comprou?

Aí, sou positivo. Lembro-me bem. Comprei-o para oferecer; curiosamente - ou não -, a pessoa a quem o ofereci, ofereceu-me, na mesma altura - Natal? - idêntica obra.

História do Feio, de Umberto Eco.

Era um livro merecidamente caro.

terça-feira, 5 de outubro de 2010

TOLSTOI: GUERRA E PAZ


Para uma sessão na Biblioteca da minha escola, preparo, em conjunto com um aluno, Guerra e Paz, de Tolstoi.

Lev Tolstoi morreu há cem anos. Essa é a ocasião que se irá comemorar. Guerra e Paz é, por sua vez, o romance que, intrigado, notei que esse moço, na escola, costumava trazer debaixo do braço. Convidei-o, pois, para uma parceria inédita: um professor e um aluno (que, por acaso, nem é aluno desse professor), conversando, diante de uma plateia de jovens, acerca de Guerra e Paz.

Trata-se de um livro monumental, traduzido para português, nos últimos anos, numa série de quatro pesados volumes. Mais tarde, um jornal principiou a vender a mesma obra, como suplemento, às quintas-feiras, em dez fascículos muito bonitos (vai no segundo), magrinhos, contendo, o primeiro, um prefácio de António Lobo Antunes e, todos eles, ilustrações de Júlio Pomar.

A preparação que venho fazendo consiste, para já, em reler a obra, semana após semana, nesta nova edição. Percebo, pelas palavras de Lobo Antunes, que, à época, o romance de Tolstoi, regularmente publicado como folhetim, causou certa perturbação. Mesmo escritores maiores e perspicazes (como Henry James) se queixavam, em Guerra e Paz, de uma indistinção de momentos, lugares e famílias: como se Tolstoi fosse um deus com vocação para regente de orquestra, e usasse abusivamente a sua omnisciência de forma a harmonizar - e a desarmonizar - centenas de instrumentos, simultaneamente, esquecido de (ou indiferente a que) o ouvinte - ou leitor - não goza da mesma capacidade de tudo ouvir e ver e compreender ao mesmo tempo.

Lamentavam-se também, por outro lado, de uma fusão pouco conhecida, à época, ou pouco usada (mas que Tolstoi ousava) entre o histórico e o fictício. Aquela convivência de indivíduos historicamente reais - Napoleão e o Czar, quanto mais não fosse - e personagens inventadas é mais um instrumento que o deus regente convoca para a sua sinfonia, a qual, para várias pessoas, dificilmente não é senão uma soma arbitrária de ruído. Tome-se, como exemplo clássico dessa criativa confusão entre o real e o imaginário, toda a cena em que o general Kutúzov, figura histórica incontornável da guerra, passa revista aos seus regimentos fatigados, e entra, por causa de um casaco que não respeitaria as normas, em choque com Dolókhov, personagem fictícia, um jovem bêbedo e arruaceiro, que fora despromovido a soldado raso.

Não é fácil. Ressinto-me sempre da leitura de autores russos, de que, não obstante, gosto muito. Os nomes russos, que nos não são familiares, e que, ao longo das páginas, são substituídos, sem advertência prévia, por diminutivos ou títulos (a princesa, o conde, a condessa), tornam a leitura, muitas vezes, lenta, embora nunca penosa. Mas Guerra e Paz é extraordinário, apesar dos escolhos e dos óbices. Só aos melhores, aos deuses melómanos, é dado o poder de construir uma tal catedral que possui, em si, a brusca e vertiginosa mudança: já viram como ele transita de situações recatadas, íntimas - uma rapariga que chora, oculta, roída de ciúmes; uma mulher que disseca a carta da sua melhor amiga, interrogando-se sobre as verdadeiras intenções e tentando ler nas entrelinhas dos episódios que esta narra; um jovem que se declara à sua amada -, para a descrição dos movimentos complicados de exércitos, que mobilizam milhares de homens? Ou para recepções, chás ou bailes que, nos salões aristocráticos, continuavam a fazer-se, como se os rumores da guerra iminente ainda não fossem senão matéria de conversa intelectual e fútil?

Em Tolstoi, é claro, a penetração psicológica é sempre avassaladora. Por detrás de uma aparente simplicidade de certas personagens surgem imprevisíveis e cruciais tensões de personalidade. Penso em Pierre, por exemplo, cuja inibição leva a que o tomem por um idiota, bondoso e um tanto inconveniente, mas em que se revelam, passo a passo, camadas de forças, dúvidas, contradições, convicções, aspirações, pensamentos, cobardias e coragens, que o tornam nosso irmão.

Colocaria Guerra e Paz naquela categoria de livros que têm muitas exigências: exigem tempo, disponibilidade, paciência, concentração, ou seja, um estado de espírito próprio e o desejo de se acertar com as mudanças de ambiente ou situação. Mas que, como certas - raras - pessoas, se pode dar ao luxo de exigir tanto. Porque o que, em contrapartida, tem para oferecer, é imenso. É memorável.

3º DIA: 10 LIVROS EM 10 DIAS

3. Qual o livro mais barato que já comprou?

Nem uma dúvida. Nenhuma, absolutamente.

The Great Gatsby, de F. Scott Fitzgerald.

Trouxe-o, recentemente, de uma viagem a Houston, por menos de 3 dólares.

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

2º dia: 10 Livros em 10 dias

Mais uma pergunta:

2º - Que livro mais odiou?

Não tendo a odiar livros. Não tenho problema algum em deixar um livro a meio, quando sinto que estou começando a odiá-lo. E se algum me desagradou, passado tempo acabarei por esquecê-lo.

Se, apesar de todos estes considerandos, há, mesmo assim, um livro que me vem imediatamente à memória quando associo o verbo "odiar" a uma leitura que tenha feito, é porque de facto o odiei. Irremediavelmente! Medíocre, mal escrito, sem ideias, gratuitamente ordinário e grosseiro, triste, vazio, inepto.

Ou seja: o livro que mais me odiei foi: Vai uma Queca?, de Miguel Dias

domingo, 3 de outubro de 2010

10 LIVROS EM 10 DIAS: UM DESAFIO VINDO DE LONGE

Ana Pádua, de quem descobri, há pouco, o blogue, lançou um desafio chamado 10 livros em 10 dias.

Em cada um desses dez dias, se responderia a uma pergunta sobre um livro.

A primeira pergunta é:
1. Qual o livro de que mais gostou?

E a essa respondo, sem pestanejar: À la Recherche du Temps Perdu.

Pode parecer um truque sujo, porque A Busca é constituída por sete livros, não por um.

Assim, sendo mais específico, responderia: o último. (Sendo que só faz sentido, no entanto, ler esse último após haver lido os seis anteriores).

Portanto, a minha resposta, agora mais precisa, seria: O Tempo Reencontrado [VII volume de Em Busca do Tempo Perdido], de Marcel Proust.

JOSÉ LUÍS PEIXOTO: LIVRO


A língua portuguesa é de uma docilidade e de uma doçura espantosas; pode não parecer, quando a ouvimos, às vezes, pronunciada no sotaque fechado, de vogais que mal se percebem e consoantes suprimidas, que é típico de alguns portugueses. Mas na ideia de que esta língua é, em si mesma, uma pátria, pressentimos a imensidão sublime de possibilidades que o próprio Pessoa foi realizando, como, por exemplo, Camões, Bocage, Cesário ou Pessanha, antes dele, e tantos outros, depois.

Em alguns escritores, isto é, em certos oficiantes da língua portuguesa, é evidente o exercício da escrita como gozo. Esta palavra é banal. Desprezo-a um pouco, como tendo a desprezar, talvez injustamente, todas as palavras banais e a maioria das pessoas banais. (E talvez por isso, antes que mo atirem à cara, um pouco a mim mesmo). Mas a questão é que, diante de alguns textos, percebemos o prazer que têm de ter dado a escrever. É um prazer diferente, mas cúmplice daquele que os leitores encontram, depois, na sua leitura. Mesmo que haja dor oculta sob as palavras, mesmo quando o dizer do texto se move sobre a experiência de um certo sofrimento, mesmo aí, há um prazer quase masoquista que se imiscui: a irrecusável alegria de sentir como até a tristeza pode tomar parte da beleza, e oferecer-se, ao leitor, como algo que a língua do corpo e da alma absorvem, saboreiam.

Há, da parte de alguns intelectuais muito «intelectuais», um parti pris relativamente a José Luís Peixoto, que não compreendo bem. A sua poesia, sobretudo, é, muitas vezes, associada a um trabalho menor. Não sei. Tenho nas mãos, neste momento, o seu último livro, que se denomina precisamente Livro, e reconheço, nas páginas, aquela escrita a que me referia, essa escrita que se não faz sem fruição. Há uma delicadeza das palavras que é, claramente, uma procura de dizer como se não diz habitualmente: não existem chavões nem frases feitas, não existem fórmulas assentes nem metáforas gastas. É um trabalho de puro gozo, da pura fruição, do gosto em alargar a língua pátria (isto é, a língua como pátria). Do gosto de criar o inesperado, o improvável, o fresco, afastando-se sempre do déjà-lu.

Quando se faz isto, corre-se algum risco. Para já, o da ilegibilidade. Mas José Luís Peixoto mantém-se sempre compreensível; nenhum atrevimento linguístico o arranca a nós. Ouvimos o eco de Saramago na sua escrita (em que também se evita uma compartimentação demasiado rígida entre falantes), mas até no seu modo de beber na fonte saramaguiana, José Luís Peixoto é singular, é único, é ele.

JLP consegue aproximar-se tanto de nós, seus leitores, que nesta história polifónica, em que todos os mundos que se cruzam entre si são mundos em que podemos penetrar e compreendemos, até o que poderia parecer uma relação sórdida (entre a «mulher casada» e um jovem retardado, como se dizia antes) tem algo de sensual e de belo, sem perder, contudo, a verosimilhança, sem perder a sua autenticidade, no artifício da poesia.

Livro pode, efectivamente, chamar-se Livro: primeiro, porque há, de facto, um livro central neste romance, pousado numa mesa de Biblioteca, que, a partir das letras que vão sendo sublinhadas à vez, possibilita a comunicação entre dois desconhecidos; mas principalmente porque se trata de uma auto-referência: este livro é Livro, no sentido em que, nas suas 263 páginas, se iluminam,
perante nós, as epopeias de pessoas que se perdem umas das outras e se procuram umas às outras, histórias paralelas que no infinito se interceptarão; a pobreza, a sordidez, um desconhecimento das consequências dos actos do desejo, a expulsão do paraíso: com a diferença, em relação a «O» Livro, quer dizer, a Bíblia, que, aqui, o paraíso inicial é já só um paraíso relativo: mais o lugar da rotina do que o da felicidade. Mas que rotina impede que o desejo pulse nos corpos em crescimento, que o amor alicie, que o passado surja para pedir contas? Que paraíso - e retomo, aqui, o que subjaz ao meu post sobre Jesusalém - que paraíso não está, afinal, desde sempre, e desde o interior de si mesmo, destinado a perder-se?

Como há um anónimo que me diz que não percebe a última parte (será a última parte do livro, ou do meu post?), vou reformulá-la: «há outra justificação, essa sim, fundamental para que este livro se chame Livro. Sabe-o quem o tenha lido até ao fim: mas, como é evidente, não a poderia desvendar aqui». Pronto!

sábado, 2 de outubro de 2010

UM COMENTÁRIO BELO, MUITO BELO

Está sob o texto que escrevi acerca de Mrs. Dalloway.
É um comentário de uma leitora (presumo, porque escreve no feminino), que não assina senão «Eu», e que não sei quem seja.

Mas é tão bonito, está tão bem escrito, toca-me tanto, que não resisto a destacá-lo. Sei que não se importará. Seja quem for.

«Estava sentada na cadeira de verga da varanda, aquela que chia como um pássaro desasado. Naquele momento límpido, remendava letras num caderno antigo. O Sol que vinha de dentro era meigo e trazia Primavera aos cíclames escarlates dos vasos que os meus pés descalços contornavam. Lá dentro também havia pessoas cinzentas e animais ferozes, mas para esses não encontrei linhas de remendar.
Estava, portanto, nesta minha oficina quando a vi passar. Ela ia ligeira pela rua abaixo, com um vento sorrateiro na bainha da saia rodada, como um arpão em mar alto. Estacou o passo num letreiro néon onde se lia: "Donna Tartt". Entrou, evaporou-se no algures.
No dia seguinte também lá entrei. Os meus olhos despertos quiseram saber mais. O papel de parede lembrava-me a biblioteca do Teotónio, aquele que um dia me fugiu para o lado invés do mundo. Por causa dele e dela (a "Donna Tartt", como passei a chamar-lhe), visito regularmente esta sala, onde as molduras aprimoradas guardam histórias sem remendos.
Dizem que o dono trabalha nas obras, escritas. Sim, claro».

«Eu»

sábado, 25 de setembro de 2010

MIA COUTO: JESUSALÉM

Quem siga este blogue há algum tempo (não se riam: pessoas há, com efeito, que o seguem, não diria religiosamente, mas regularmente), terá sem dúvida tropeçado nas reticências que já manifestei a propósito de Mia Couto.

A minha relação, não isenta de ambiguidades, com a obra de Mia Couto tem uma história longa, que posso resumir. Como ele, sou de Moçambique. Como lhe aconteceu a ele, Moçambique também se entranhou irremediavelmente em mim. Aliás, conhecia Mia Couto de vista: era eu um estudanteco liceal, era ele já o promissor jovem jornalista da revista Tempo, cuja redacção se situava no rés-do-chão do prédio onde a minha família morava; cruzávamo-nos, pois, num café próximo. Eu estava sempre atento ao rapaz baixo, de óculos redondos e barba, que se sentava diante de uma chávena fumegante, com dois ou três colegas. Ouvia-os, ao longe, da minha mesa desimportante.

Quando vim definitivamente para Portugal, por razões que não vem ao caso rememorar, sofri a perda de Moçambique, como o apaixonado que se despede, talvez para sempre, da sua amada. E nesses dias em que andei perdido e desintegrado, pelas ruas minúsculas, frias e tortuosas de Lisboa, sem conhecer ninguém e sem conseguir fazer amigos, desligado de uma cultura que compreendia mal e me olhava de revés, a descoberta dos contos de Mia Couto, que se estreava então (penso) na literatura, salvou-me de um qualquer precipício.

Couto devolvia-me, mais do que histórias típicas, uma linguagem em que reconhecia a fala do meu povo moçambicano, com a sua notável capacidade para inventar verbos a propósito de tudo: «frescar», para ir apanhar fresco, «bichar», para estar numa fila (bicha), «matabichar», para a primeira refeição, a que «mata o bicho», ou o prodigioso «desconseguir», tão eficaz, sucinto e correcto como oposição ao enunciar do conseguimento de algo; reencontrava a sintaxe solta, próxima da brasileira, os gerúndios, os termos saudosos, as palavras reinventadas. Mia Couto foi um dos que me salvaram do absoluto desamparo.

Que se estragou, entre nós, de então para cá? É difícil de explicar. Por um lado, cansei-me de um tom politicamente correcto, moralista, que se adensava nos romances e, mais do que aí, nas suas crónicas, nos seus artigos, nas suas «opiniões». Por outro lado, aquela linguagem que principiara por ser uma ventania, uma descoberta, uma revolução, uma comunhão e, não sei bem como, se ia tornando forçada, artificial, previsível, aquilo a que chamamos uma fórmula: Mia Couto ia-me sendo insuportável. Mais: como todas as outras pessoas o adoravam, esta minha fadiga tornou-se uma espécie de segredo inconfessável, de mal-estar solitário, impartilhável.

Regressei ao autor, porque um seu último romance me foi recomendado por uma amiga que nunca me deixara ficar mal. Comprei, portanto, Jesusalém e, de facto, encontrei-me, de súbito, perante uma história inesperada, com um certo travo de realismo mágico, ou de realismo quase-mágico, desenhando uma realidade a tocar nos seus perplexos limites: maravilhosamente improvável, se bem que não, em rigor, impossível.

A linguagem renasceu. Como se Mia Couto se tivesse apercebido de que havia que mudar. Algumas metáforas continuam a parecer-me pobres (engordar o silêncio da noite, por exemplo, soa-me mal; topo, em contrapartida, um delicioso «poentar», designando a acção do sol poente), mas quase consegue retornar a um moçambicanês autêntico, que me faz reaver o sentimento de maravilha dos primeiros tempos.

Neste romance acerca de loucura, isolamento e revolta, podemos ler a alegoria de uma terra que, de algum modo, cortou laços e se perdeu de si («Jesusalém»). É simplesmente uma leitura possível, uma leitura latente, uma sub-leitura. Trata-se, em qualquer caso, de enfrentar a derradeira esperança de uma redenção, mas uma redenção céptica e amargurada, sem réstia de inocência, nesta religião invertida, que vive aquela família, certa de que já nada ou ninguém mais se encontra vivo no mundo a não ser eles, e esperando o regresso de Deus - mas, naturalmente, para pedir desculpa por todos os erros por Si cometidos.

A amargura fica bem a Mia Couto. A quebra da inocência não é necessariamente um fim. Será, é claro, a perda do paraíso: todavia, a perda do paraíso é o início de algo mais difícil, mas, porventura, muito mais interessante.

domingo, 19 de setembro de 2010

RUBEM FONSECA: O SEMINARISTA


Existem, por um lado, livros do género policial. Claro. Mesmo que sejam irónicos, como os de Ross MacDonald, são, primeiramente, romances policiais: valem pelo entrecho, pelo mecanismo que sustenta a dialéctica entre o explícito e o sugerido, de forma a surpreender o leitor. A ironia é, nesse caso, um estilo, um condimento, não a essência.

Por outro lado, há livros, como Morte aos Feios, do surpreendente Boris Vian, em que a primeira escolha é a do tom irónico. O seu carácter policial viria em segundo lugar. Em última análise, faz parte da estratégia da ironia. E cuida-se, nesses casos, de brincar com o género, assumindo, distanciadamente, os lugares comuns e os tiques que definem a tradição.

Do meu ponto de vista, O Seminarista, de Rubem Fonseca, pertence a esta segunda categoria. O narrador é um ex-seminarista que se dedica à carreira de assassino profissional. Mas, numa escrita despojada, que foge a qualquer filigrana retórica, recorrendo, frequentemente, ao diálogo, RF mantém essa tensão que é, por si mesma e, ao mesmo tempo, um corrosivo elemento irónico e um manancial de interesse, aliciamento e cultura. Refiro-me ao facto de um «seminarista» ter, como profissão, matar pessoas. A cultura que subjaz, pois, a todo o texto, carregando-o com as referências literárias do assassino (a sagrada escritura - em latim -, os teólogos ou os poetas que o narrador gosta de citar) assumem uma ambiguidade maravilhosa. Trata-se, num certo nível, de brincar com estas referências. De as desconstruir, é certo: o que não impede que, no seu conjunto, em um outro nível, elas entreteçam uma espécie de tecido que, em si mesmo, é estética e literariamente gostoso e apetecível.

Falta, ao género, uma caução intelectual. Por voltas que o mundo dê, e a não ser com raras excepções, os intelectuais olharão sempre para o policial como sendo, irremediavelmente, um género menor. Escritores como Rubem Fonseca trazem a estes romances, consciente ou inconscientemente, um suplemento de profundidade que é bem visto e justifica alguns prémios. Não são para se ler literalmente. Mesmo que, como se afirma, neste caso se trate de «recriar um noir em língua portuguesa», percebe-se que alguém está a brincar. Não é um policial puro, é um divertissement. É um jogo sobre o género, uma desconstrução vagamente psicológica. Lacan e Derrida aprovariam.