sábado, 9 de outubro de 2010

ISAIAH BERLIN: «O OURIÇO E A RAPOSA»



Já tive oportunidade de garantir que o termo "preparação" seria, neste caso, um termo excessivo. Mas a verdade é esta: com o objectivo de realizar uma palestra, na Biblioteca, para comemorar o centenário do falecimento de Tolstoi, tenho andado a reler, com um cuidado especial, Guerra e Paz. Ao mesmo tempo, procurando uma rede de informações acerca desse romance e desse autor, voltei a desaguar numa obra de Sir Isaiah Berlin, A Apoteose da Vontade Romântica: uma série de ensaios no seu inglês luminoso, espirituoso, muito vivos e subtis, conduzidos por uma inteligência política aguda e por uma cultura vasta e heterodoxa. Um desses ensaios, bastamente citado, aliás, é «O Ouriço e a Raposa», acerca da visão que Tolstoi tem da História.

O título, que sempre me intrigara, remete para um verso do poeta grego Arquíloco: «A raposa sabe muitas coisas, mas o ouriço sabe uma coisa muito importante.». (Infinitos são os astuciosos recursos da raposa; o ouriço, em contrapartida, não tem senão um único: concentrar-se sobre si, esperando que o inimigo se magoe nos seus espinhos...)
Dando um sentido específico a esta distinção, Isaiah Berlin considera que alguns escritores seriam escritores-raposa e, outros, escritores-ouriço. A ideia é, de facto, curiosa.

Entre os escritores-raposa, ou seja, aqueles que sabem muitas coisas, irrequietos e velozes, os que tendem a dispersar-se em inúmeras personagens e temas, aqueles cujos livros nunca se parecem uns com os outros, aqueles cujos interesses se fracturam irreconciliavelmente, poderíamos referir homens como Montaigne (por causa dos seus maravilhosos ensaios em que, a pretexto de falar unicamente sobre si próprio, se reparte por temas como as mulheres, a educação, a amizade, os livros ou o corpo); ou, por exemplo, Jean-Paul Sartre (que da filosofia ao romance e ao teatro, dedicando-se também à biografia, à auto-biografia e à política, não deixou um só instrumento por tocar). Por outro lado, entre os escritores-ouriço, aqueles que sabemos que, por muito que escrevam, não escrevem senão acerca de uma única verdade, procurando recorrentemente unificar, sob a força de gravidade desta, tudo aquilo em que põem o dedo, estaria Hegel, estaria Ibsen.

É interessante pensarmos nos escritores que prezamos, sob este ponto de vista. Eça de Queirós, diria eu, é um ouriço. Gonçalo M. Tavares, sem dúvida, também. Nuno Ramos é uma raposa. Fernando Pessoa é o rei das raposas.

Alguns, não sei. Sophia? Whitman? Proust? (Berlin considera-o um ouriço, e eu, inseguro, divirjo: embora compreenda a razão...). Julgo que o problema se deve a que podem ser simultaneamente uma ou outra coisa, num ou noutro aspecto ou consoante o critério; ou ser uma coisa, sob a aparência de uma outra.

Seria, segundo o próprio Berlin, o caso de Tolstoi, que, assumindo-se a si próprio como um ouriço, até pela concepção de História que expõe em vários ensaios, no entanto, ao criar, cria como uma raposa. Isso explica, de resto, o carácter fragmentário, intrinsecamente "desunido", de Guerra e Paz. Se se torna praticamente impossível reduzi-lo a uma narrativa linear, é porque é uma visão da guerra enunciada num texto que se funda, de certa forma, numa guerra interna. Gravitamos ao redor de diferentes famílias russas, e cada uma dessa famílias é um universo em expansão e em choque com os demais. Verdades, sentimentos, interesses contraditórios se combatem, a partir de perspectivas múltiplas, que se não fundem nem coincidirão. Fala-se, num mesmo capítulo, se não numa mesma página, em russo, em francês ou em alemão; passa-se do fervor religioso para uma euforia da liberdade; da paixão para a melancolia.

A alma russa apresenta-se, ali, em todas as suas cintilações e possibilidades, mas com um grau de intensidade que, como afirma Rogério Casanova, é sempre extremo: tanto na alegria como na dor, tanto no amor como no ciúme. É o texto de uma raposa, claro.

Sem comentários: