terça-feira, 5 de outubro de 2010
TOLSTOI: GUERRA E PAZ
Para uma sessão na Biblioteca da minha escola, preparo, em conjunto com um aluno, Guerra e Paz, de Tolstoi.
Lev Tolstoi morreu há cem anos. Essa é a ocasião que se irá comemorar. Guerra e Paz é, por sua vez, o romance que, intrigado, notei que esse moço, na escola, costumava trazer debaixo do braço. Convidei-o, pois, para uma parceria inédita: um professor e um aluno (que, por acaso, nem é aluno desse professor), conversando, diante de uma plateia de jovens, acerca de Guerra e Paz.
Trata-se de um livro monumental, traduzido para português, nos últimos anos, numa série de quatro pesados volumes. Mais tarde, um jornal principiou a vender a mesma obra, como suplemento, às quintas-feiras, em dez fascículos muito bonitos (vai no segundo), magrinhos, contendo, o primeiro, um prefácio de António Lobo Antunes e, todos eles, ilustrações de Júlio Pomar.
A preparação que venho fazendo consiste, para já, em reler a obra, semana após semana, nesta nova edição. Percebo, pelas palavras de Lobo Antunes, que, à época, o romance de Tolstoi, regularmente publicado como folhetim, causou certa perturbação. Mesmo escritores maiores e perspicazes (como Henry James) se queixavam, em Guerra e Paz, de uma indistinção de momentos, lugares e famílias: como se Tolstoi fosse um deus com vocação para regente de orquestra, e usasse abusivamente a sua omnisciência de forma a harmonizar - e a desarmonizar - centenas de instrumentos, simultaneamente, esquecido de (ou indiferente a que) o ouvinte - ou leitor - não goza da mesma capacidade de tudo ouvir e ver e compreender ao mesmo tempo.
Lamentavam-se também, por outro lado, de uma fusão pouco conhecida, à época, ou pouco usada (mas que Tolstoi ousava) entre o histórico e o fictício. Aquela convivência de indivíduos historicamente reais - Napoleão e o Czar, quanto mais não fosse - e personagens inventadas é mais um instrumento que o deus regente convoca para a sua sinfonia, a qual, para várias pessoas, dificilmente não é senão uma soma arbitrária de ruído. Tome-se, como exemplo clássico dessa criativa confusão entre o real e o imaginário, toda a cena em que o general Kutúzov, figura histórica incontornável da guerra, passa revista aos seus regimentos fatigados, e entra, por causa de um casaco que não respeitaria as normas, em choque com Dolókhov, personagem fictícia, um jovem bêbedo e arruaceiro, que fora despromovido a soldado raso.
Não é fácil. Ressinto-me sempre da leitura de autores russos, de que, não obstante, gosto muito. Os nomes russos, que nos não são familiares, e que, ao longo das páginas, são substituídos, sem advertência prévia, por diminutivos ou títulos (a princesa, o conde, a condessa), tornam a leitura, muitas vezes, lenta, embora nunca penosa. Mas Guerra e Paz é extraordinário, apesar dos escolhos e dos óbices. Só aos melhores, aos deuses melómanos, é dado o poder de construir uma tal catedral que possui, em si, a brusca e vertiginosa mudança: já viram como ele transita de situações recatadas, íntimas - uma rapariga que chora, oculta, roída de ciúmes; uma mulher que disseca a carta da sua melhor amiga, interrogando-se sobre as verdadeiras intenções e tentando ler nas entrelinhas dos episódios que esta narra; um jovem que se declara à sua amada -, para a descrição dos movimentos complicados de exércitos, que mobilizam milhares de homens? Ou para recepções, chás ou bailes que, nos salões aristocráticos, continuavam a fazer-se, como se os rumores da guerra iminente ainda não fossem senão matéria de conversa intelectual e fútil?
Em Tolstoi, é claro, a penetração psicológica é sempre avassaladora. Por detrás de uma aparente simplicidade de certas personagens surgem imprevisíveis e cruciais tensões de personalidade. Penso em Pierre, por exemplo, cuja inibição leva a que o tomem por um idiota, bondoso e um tanto inconveniente, mas em que se revelam, passo a passo, camadas de forças, dúvidas, contradições, convicções, aspirações, pensamentos, cobardias e coragens, que o tornam nosso irmão.
Colocaria Guerra e Paz naquela categoria de livros que têm muitas exigências: exigem tempo, disponibilidade, paciência, concentração, ou seja, um estado de espírito próprio e o desejo de se acertar com as mudanças de ambiente ou situação. Mas que, como certas - raras - pessoas, se pode dar ao luxo de exigir tanto. Porque o que, em contrapartida, tem para oferecer, é imenso. É memorável.
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2 comentários:
Oi, estou lendo seu post e já ouvi o mesmo que você disse em relação aos nomes por parte de uma amiga. Se vc precisar de uma ajuda quanto a isto estou a seu dispor. No meu blog existem uns 4 ou 5 posts a este respeito, com dicas para ajudar o leitor com dificuldade:http://russiashow.blogspot.com/search/label/NOMES%20RUSSOS
Qualquer coisa, me coloco a seu inteiro dispor.
Abraços e continue lendo os escritores russos: sem dúvida são os melhores.
Penso que, com atenção - e esta preparação tem de ser feita com uma atenção maiúscula - conseguimos ir-nos habituando. Mas o problema é que, muitas vezes, as personagens têm três nomes. Sobretudo as femininas. E não constitui confusão, para um autor russo, ora nomeá-la pelo primeiro, ora por um apelido ora por outro. Também é frequente Tolstoi, por exemplo, escrever: «E então, a princesa, entrou pela porta...»; mas de que princesa se trata? É que há várias. Já para não falar dos diminutivos, que, de repente, também substituem qualquer dos nomes que se usara até aí. Não deixarei de frequentar o seu blogue, Milu, e muito obrigado pela sua disponibilidade.
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