Era Wladimir Nabokov um jovem de 33 anos quando escreveu e publicou este romance, originalmente em russo. Ou seja: tão longe ainda da sua maturidade literária - se nos lembrarmos de que terá já 56 anos aquando da edição de Lolita, sua obra maior e perfeita - e, todavia, em Desespero, exibe já todos os indícios do seu talento, como sementes inatas. Aliás, a vários títulos, Desespero prenuncia Lolita: para já, na construção do narrador/protagonista, que, aliás, se chamava, no primeiro, Hermann Hermann (rascunho do célebre Humbert Humbert, do segundo): nos dois casos, uma personalidade doentiamente cheia de si, sem escrúpulos, no limiar de uma sinistra loucura. Porém, sobretudo na escrita, no estilo, no domínio da síntese, na elaboração de frases muito tensas, que são, frequentemente, verdadeiros achados, momentos inesquecíveis de leitura, adivinhamos, no jovem Nabokov, o génio em que Nabokov se tornará.
Numa descrição, Hermann emprega, inadvertidamente, uma palavra que detesta. Não por razões estéticas, mas psicológicas. Porque lhe desperta estranhos e fundos fantasmas, labirínticos e infinitos pavores. É a palavra «espelho». Quando dá conta dessa intromissão, interrompe o que vem contando, fala do significado que os espelhos têm para a sua mente distorcida, ensaia uma breve psicanálise. Depois, quer reatar, zanga-se com os leitores, acusa-os: «É difícil falar se nos interrompem constantemente». Esta passagem ilustra o humor de Nabokov, que me é tão caro.
É um humor que está presente na própria forma da escrita. Trata-se, de algum modo, do texto de um louco. Isso justifica, em parte, o seu carácter de meta-texto: Hermann questiona-se, a cada passo, acerca do que está escrevendo, põe em causa as palavras que escolhe, arrepende-se, propõe-se riscar períodos inteiros, decide não o fazer, embora deixando claro que estão errados e que não exprimem o que lhe interessava dizer: quem domina o acto de escrever não é já a sua razão, mas a memória, a cuja incapacidade pede constantemente contas. O terceiro capítulo, por exemplo, inicia com esta auto-interrogação: «Como começaremos este capítulo? Proponho diversas variantes para escolha.» E apresenta-as, uma por uma, pondo-as em confronto e distanciando-se criticamente de todas elas.
Ou seja, sob pretexto de um diálogo com o leitor, este romance é, fundamentalmente, um diálogo do narrador consigo mesmo - inquieto, sarcástico, manipulador, jogando com os dados a seu bel-prazer, afundando-se no negrume do seu inconsciente e debatendo-se com a cisão entre ele e si mesmo. Aquele outro, com que se encontra, poderá ser um homem igual a si? Ou trata-se de si separado de si? O tema do duplo é, como se vê, um excelente pretexto (e típico de Nabokov, que o retomará em O Olho) para uma narrativa delirante: o leitor perguntar-se-á se está simplesmente a ser enganado; se o narrador se mantém fiel a uma realidade estranha, porventura inverosímil, porém factual; ou se não será no âmago da sua mente conturbada que se encontra a justificação para aquela aparição especular.
É um romance fácil? Não é um romance fácil. As interrupções daquele monólogo que se apresenta como em fase de rascunho, com interrupções, regressões, auto-imprecações, por engraçado que seja, cansa, impede a progressão? Sem dúvida. Mas não deixa de ser curioso observar que alguns dos romances mais interessantes que se escreveram são romances que não progridem. Que se interrogam indefinidamente. E que, nessa auto-interrogação, recuam sobre si.
1 comentário:
muito da hora!@
Não conhecia o autor;
Preciso mesmo me apronfudar mais na literatura
Russa...estou cuidando disso, sabe?
Cook
=}
Enviar um comentário