domingo, 3 de outubro de 2010

JOSÉ LUÍS PEIXOTO: LIVRO


A língua portuguesa é de uma docilidade e de uma doçura espantosas; pode não parecer, quando a ouvimos, às vezes, pronunciada no sotaque fechado, de vogais que mal se percebem e consoantes suprimidas, que é típico de alguns portugueses. Mas na ideia de que esta língua é, em si mesma, uma pátria, pressentimos a imensidão sublime de possibilidades que o próprio Pessoa foi realizando, como, por exemplo, Camões, Bocage, Cesário ou Pessanha, antes dele, e tantos outros, depois.

Em alguns escritores, isto é, em certos oficiantes da língua portuguesa, é evidente o exercício da escrita como gozo. Esta palavra é banal. Desprezo-a um pouco, como tendo a desprezar, talvez injustamente, todas as palavras banais e a maioria das pessoas banais. (E talvez por isso, antes que mo atirem à cara, um pouco a mim mesmo). Mas a questão é que, diante de alguns textos, percebemos o prazer que têm de ter dado a escrever. É um prazer diferente, mas cúmplice daquele que os leitores encontram, depois, na sua leitura. Mesmo que haja dor oculta sob as palavras, mesmo quando o dizer do texto se move sobre a experiência de um certo sofrimento, mesmo aí, há um prazer quase masoquista que se imiscui: a irrecusável alegria de sentir como até a tristeza pode tomar parte da beleza, e oferecer-se, ao leitor, como algo que a língua do corpo e da alma absorvem, saboreiam.

Há, da parte de alguns intelectuais muito «intelectuais», um parti pris relativamente a José Luís Peixoto, que não compreendo bem. A sua poesia, sobretudo, é, muitas vezes, associada a um trabalho menor. Não sei. Tenho nas mãos, neste momento, o seu último livro, que se denomina precisamente Livro, e reconheço, nas páginas, aquela escrita a que me referia, essa escrita que se não faz sem fruição. Há uma delicadeza das palavras que é, claramente, uma procura de dizer como se não diz habitualmente: não existem chavões nem frases feitas, não existem fórmulas assentes nem metáforas gastas. É um trabalho de puro gozo, da pura fruição, do gosto em alargar a língua pátria (isto é, a língua como pátria). Do gosto de criar o inesperado, o improvável, o fresco, afastando-se sempre do déjà-lu.

Quando se faz isto, corre-se algum risco. Para já, o da ilegibilidade. Mas José Luís Peixoto mantém-se sempre compreensível; nenhum atrevimento linguístico o arranca a nós. Ouvimos o eco de Saramago na sua escrita (em que também se evita uma compartimentação demasiado rígida entre falantes), mas até no seu modo de beber na fonte saramaguiana, José Luís Peixoto é singular, é único, é ele.

JLP consegue aproximar-se tanto de nós, seus leitores, que nesta história polifónica, em que todos os mundos que se cruzam entre si são mundos em que podemos penetrar e compreendemos, até o que poderia parecer uma relação sórdida (entre a «mulher casada» e um jovem retardado, como se dizia antes) tem algo de sensual e de belo, sem perder, contudo, a verosimilhança, sem perder a sua autenticidade, no artifício da poesia.

Livro pode, efectivamente, chamar-se Livro: primeiro, porque há, de facto, um livro central neste romance, pousado numa mesa de Biblioteca, que, a partir das letras que vão sendo sublinhadas à vez, possibilita a comunicação entre dois desconhecidos; mas principalmente porque se trata de uma auto-referência: este livro é Livro, no sentido em que, nas suas 263 páginas, se iluminam,
perante nós, as epopeias de pessoas que se perdem umas das outras e se procuram umas às outras, histórias paralelas que no infinito se interceptarão; a pobreza, a sordidez, um desconhecimento das consequências dos actos do desejo, a expulsão do paraíso: com a diferença, em relação a «O» Livro, quer dizer, a Bíblia, que, aqui, o paraíso inicial é já só um paraíso relativo: mais o lugar da rotina do que o da felicidade. Mas que rotina impede que o desejo pulse nos corpos em crescimento, que o amor alicie, que o passado surja para pedir contas? Que paraíso - e retomo, aqui, o que subjaz ao meu post sobre Jesusalém - que paraíso não está, afinal, desde sempre, e desde o interior de si mesmo, destinado a perder-se?

Como há um anónimo que me diz que não percebe a última parte (será a última parte do livro, ou do meu post?), vou reformulá-la: «há outra justificação, essa sim, fundamental para que este livro se chame Livro. Sabe-o quem o tenha lido até ao fim: mas, como é evidente, não a poderia desvendar aqui». Pronto!

1 comentário:

Anónimo disse...

nao percebi a ultima parte, alguem me pode explicar?