quinta-feira, 25 de agosto de 2011

WILLIAM MAXWELL: VIERAM COMO ANDORINHAS


Agrada-me chegar a livros inesperadamente. Ou porque um amigo me aconselhou, ou porque o meu interesse foi fisgado por um comentário no suplemento literário de um jornal. Mas a minha forma predilecta é a de chegar a livros através de livros.

Este romance, sobre que hoje venho falar, é abundantemente referido em Ilha Teresa, de Zimler: Teresa, a protagonista - e narradora -, uma garota portuguesa emigrada nos EUA, ignorada pela mãe fútil e pelos adultos em geral, sente-se fascinada com um livro que anda entretanto lendo, recomendado pelo professor de inglês. Trata-se de They Came Like Swallows, de William Maxwell.

As razões pelas quais Teresa consegue identificar-se com as personagens desse romance, que vai lendo, particularmente Bunny, não deixam dúvidas: a mesma dificuldade em compreender e integrar-se num mundo onde tudo está permanentemente prestes a desfazer-se; a mesma necessidade de algo - ou de alguém - que funcione como um ponto fixo de paz e de sentido, a partir do qual o mundo se restaure. E, por fim, a perda definitiva desse ponto fixo - a morte de quem nos vela. [O pai de Teresa falecera...]

Procurei o livro em causa, entusiasmado. Pretendia encomendá-lo em inglês, não fazendo a menor ideia de que o romance existe numa tradução portuguesa. Ora existe. Vieram como Andorinhas. [É então isso que significa "swallows"?] Devoro-o. Estou em êxtase, faltam-me palavras.

Antes do mais, deixem-me dizer duas palavras sobre a questão da perspectiva. A primeira parte do livro é escrita segundo a perspectiva de Bunny (o que não quer dizer que este seja o narrador), a segunda segundo a de Robert, seu irmão mais velho, e a terceira não sei, ainda não sei. [Sei-o agora: é James, o pai].

Bunny lembra o pequeno Marcel, de Em Busca do Tempo Perdido. A mesma sensibilidade excessiva e descontrolada, quase histérica, e o mesmo amor ilimitado pela mãe. De algum modo, mesmo geográfica e geometricamente, é sempre em redor de sua mãe que o espaço se lhe dá no seu sentido. A biqueira do sapato dela, por exemplo, no momento em que ela se encontra de pé, é o início do padrão do tapete. E, na ausência da mãe, as colheres são simplesmente colheres: só na sua presença o mundo se ilumina e as colheres podem ser bonecos com os quais brinca.

Ainda antes de sabermos por que motivo teme todos os demais (ou quase todos), somos confrontados com esta frase que, na sua simplicidade, introduz de imediato uma sensação de insegurança e desconforto em relação ao pai: «Ela afastou-se para poder observá-lo e ver se ele se tinha lavado devidamente, e Bunny reparou com alívio nas migalhas no lugar do pai, no guardanapo dobrado displicentemente.» [O alívio perante a ausência do pai, perante os indícios de que este já tomara o pequeno-almoço e se fora].

É um livro maravilhoso, escrito, todo ele, nesse dificílimo equilíbrio entre o que explicitamente se diz e o que se deixa adivinhar. Cada frase é de uma contenção perfeita - e nessa contenção lê-se todo um universo unicamente sugerido. Por outro lado, voltemos por um instante à questãoa da «perspectiva»: o modo como Maxwell a constrói deveria servir, julgo eu, como um exemplo para todos os aspirantes a escritor. Se não, veja-se: se ao longo da primeira parte, o irmão de Bunny, Robert Morisson, nos aparece como um miúdo petulante, antipático e agressivo, ao longo de toda a segunda parte compreendemos a sua visão do mundo e, portanto, compreendemo-lo: vítima do acidente que lhe roubou uma perna, ciumento e carente - embora, paradoxalmente, incapaz de exprimir fisicamente afecto -, Robert é um pré-adolescente que não entende a fragilidade do irmão, nem a preferência da mãe.
A essa luz, curiosamente, é Bunny que nos parece uma criança mimada e um tanto falsa na manipulação do carinho dos adultos.

É todo este quadro de relações complexas, psicologicamente muito bem tratadas, que vai ser alterado com o desaparecimento do seu eixo. O que é o «dia depois»? O que resta quando já não há fundamento amoroso?

Existem livros muito bons - mas os livros perfeitos são raros. Conhecia três. [Não se percam nas contas pelo facto de um deles ser constituído por sete volumes]. Posso parecer hiperbólico, e não sei se esta sensação perdurará: neste momento, em que o leio ainda, posso dizer-vos que descobri mais um livro perfeito.

9 comentários:

Bruno Bravo disse...

Caro Pacheco, acho que já me perdi nas contas, ou deixei escapar sua menção a outros livros perfeitos que não estejam relacionados a tal obra de Proust. Quais seriam os outros dois? O Inferno? Morte em Veneza? O apanhador no campo de centeio?

josépacheco disse...

Estou perfeitamente consciente, meu caro Bruno Bravo, de que a «perfeição» de um livro depende da subjectividade do leitor.
Posto isto, eu diria que há dois livros que considero mais-que-perfeitos: Em Busca do Tempo Perdido (correndo o risco de passar por um obcecado) e O Inferno. Ninguém escreve assim e, na minha incipiente perspectiva, nenhuma outra obra se situa a esse nível (de entre as que conheço).
Perfeitas: O Apanhador no Campo de Centeio (para recorrer à sua tradução) e O Monte dos Vendavais. Depois há vários livros sublimes,que me inspiram e de que me não canso: é um nível menos raro, imensos textos caberiam nesse círculo (Margarida e o Mestre, Lolita, A Tabacaria - que é, a seu modo, uma novela -, Os Maias, Morte em Veneza...)

sonia disse...

Vou consultar a Livraria Cultura a ver se eles têm esse livro, que quero muito ler, depois desse seu comentário! Quem gostou de Em Busca do Tempo Perdido como você (posso me incluir como apaixonada por Proust?) com certeza já deixa aqui uma dica para ser considerado como um excelente orientador literário! Vou seguir seu rastro....rsrs
Abraços e boa semana!!!

sonia disse...

José, acho que terei de ler em Inglês, mesmo. Não encontrei a versão em Português na Livraria Cultura :(

Au chocolat disse...

Excelentes recomendações. Tenho a tradução de Pedro Tamen do Em Busca do tempo Perdido, qualquer dia perco-lhe o medo e mergulho de cabeça nos 7 volumes. Fiquei também curiosa em relação a este livro, vou ver se encontro na biblioteca de Oeiras.
O O Apanhador no Campo de Centeio que refere é o livro do J. D. Salinger, "à espera no centeio"?

Au chocolat disse...

Sónia, consultando o site da fnac verifico que a sextante editou o livro em Junho deste ano, já não é necessário lê-lo em inglês.

http://www.fnac.pt/Vieram-Como-as-Andorinhas-William-Maxwell/a365392?PID=5&Mn=-1&Ra=-1&To=0&Nu=1&Fr=0

josépacheco disse...

Exacto, À Espera no Centeio. Todas as traduções deste título são tramadas. Se não engano, a tradução feita por Palma Ferreira chamava-se Uma Agulha no Palheiro. Em geral, não traduzo: The Catcher in the Rye, de Salinger. Gosto muito, é um dos meus romances preferidos.

Bruno Bravo disse...

Cá no Brasil o conhecemos unicamente por "O apanhador no campo de centeio". Sendo "apanhador" uma das posições existentes no beiseball.

Marco Caetano disse...

Pacheco,
Gostei de ler este livro e gostei de ler este post.
Maxwell foi para mim uma agradável surpresa.

Convido a ver a minha opinião em:
http://conspiracaodasletras.blogspot.pt/2012/05/vieram-como-andorinhas-william-maxwell.html

Continuação de boas letras...