segunda-feira, 29 de agosto de 2011

O QUE É, AFINAL, UM LIVRO PERFEITO?



Num comentário simples, possivelmente sem segunda intenção, o meu leitor Bruno Bravo obriga-me a rever o que disse acerca dos livros perfeitos que já li.
A primeira questão que se me põe é a do que é um livro perfeito. E, claro, tenho consciência de que um livro perfeito não pode ser senão o livro perfeito para um leitor. Ou seja, um elemento de subjectividade, que diz respeito à ligação específica entre aquele texto e aquele leitor, não pode ser ignorado. O livro perfeito é sempre «o meu livro perfeito». Nada mais. Num blogue em que não falo senão dos «meus» livros, do modo como certas obras me tocaram e passaram a fazer parte da minha experiência, parece-me perfeitamente aceitável.

Posto isto, surge um outro problema. Conheço cada vez mais pessoas que fazem gosto em dizer que não têm «um» livro da sua vida (ou «um» filme, ou «uma» música...) mas, no mínimo, dezenas. Sinto-me culpado por contrariar essa tendência. Mas tenho um livro da minha vida, como sabem todos os que acompanham este blogue. É Em Busca do Tempo Perdido. É o «meu» livro absolutamente perfeito, no qual Marcel Proust atinge uma dimensão da escrita, na expressão das percepções e da memória destas, como nunca mais tornei a ver. Falo com toda a seriedade, e não para armar aos cágados. Cada período nos envolve, como se nos afogássemos tranquilamente nele, como se nada mais existisse senão aquela sucessão de imagens segundo ângulos que são sempre extremamente inesperados.

No mesmo círculo da perfeição, digamos assim, aceito «O Inferno» da Divina Comédia. Só «O Inferno»: «O Purgatório» e «O Paraíso» nunca me tentaram - talvez por insuficiência minha, porque os li com a mente demasiado carregada das tensões do inferno para que pudesse apreciar aquela beatitude. E talvez devesse relê-los. Mas, perfeito é, paradoxalmente, «O Inferno». Porquê?

Em primeiro lugar, porque a linguagem poética de Dante é muito, muito bela, mesmo [isto é: especialmente] quando se trata de expressar cenas horrendas («dantescas») de sofrimento e mal. O horror exerce um perturbador fascínio sobre mim. Mas, mais do que isto, «O Inferno» coloca questões extremas da emoção e da psicologia humanas: no vórtice da imperdoável culpa, deparamos com almas atormentadas de que nos apiedamos. Nem sempre o desígnio de Deus é muito claro; nem sempre nos parece justo. Uma das cenas que mais me comovem é a dos jovens amantes, castigados em nome de um amor adúltero e proibido, uma paixão pecaminosa mas de que se não arrependem: estão no inferno, mas eternamente juntos, de maneira que algo de bom, ilusoriamente, permanece intacto na ligação daquelas almas.

Por outro lado, Dante é a testemunha completa, piedosa, plena de sensibilidade e afecto, que se entristece - e desmaia - perante o tremendo espectáculo a que assiste. Tem medo, curiosidade, sente-se perturbado e condoído. E tudo se nos afigura tão vivo e tão real que, durante a leitura de «O Inferno», nem por um momento nos lembraríamos de pôr em causa a existência do inferno.

Sou um leitor predisposto para amar. Em geral, prefiro falar dos livros de que gosto - e gosto de muitos, muitos, muitos. Mas sempre senti que todos os demais estão em outro patamar. Possivelmente porque cada um deles trabalha profundamente «um» sentimento ou «uma» sensação ou «um» ângulo, mas só Dante e Proust mobilizam, em mim, uma infindável panóplia de sentimentos e sensações, agregando-as e desagregando-as vertiginosamente, fazendo-me descer ao que de mais profundo possa existir em mim, intelectual, psicológica, moral e esteticamente.

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