quinta-feira, 18 de agosto de 2011
A RESSURREIÇÃO DE MOZART: UM EXERCÍCIO DE SUBTILEZA
Estou ainda de volta de Nina Berbévora: gostei tanto do seu livro que, lembrando-me de que na feira do Inatel, onde o comprei, havia pelo menos mais um título da autora [numa edição da antiga Âmbar, que já nem deve existir], tornei ao local, e trouxe comigo A Ressurreição de Mozart.
A influência de Proust, neste meu texto, será excessiva se vos confessar que a leitura desta novela me fez evocar uma tarte de requeijão, deliciosa, que costumava pedir para sobremesa, num restaurante vegetariano entretanto desaparecido? Tenho, nas memórias da minha língua, o sabor daquela tarte. E o adjectivo que me ocorre é: subtil. Oiçam: por um instante, parece que escapa: a tarte está quase a tornar-se-me doce na língua, mas não inteira nem absolutamente. Como se a doçura se escondesse, muito fina e muito etérea; bruscamente alcanço-a, mas não a capturo. Perpassa, fugidia.
O conto de Berbévora participa desse tipo de subtileza. De algum modo, a história que nos é narrada poderia ser interpretada a uma certa luz. Faria, talvez, sentido: todavia, é também viável e, porventura, mais sensato e realista, que a não interpretemos a essa luz. [A graça residiria, então, mais no "equívoco" do que no "sobrenatural"]. E mesmo nesse caso, cingindo-nos aos factos relatados, estaríamos em face de uma história muito intensa, vivida durante a invasão de Paris pelo exército alemão. É uma história pungente - imbuída do troar longínquo dos canhões, de famílias que fogem, em longas filas, desespero e abandono. Mas o coração-leitor pede algo mais: espera sempre por esse quase-nada pressentido, essa possibilidade [impossível] de se tocar um sentido intangível, sublime, da ordem do amor e da música.
O extraordinário é que essa chave está sempre latente. Em nenhum momento ela é explicitada: Berbévora resiste à tentação fácil de dizer, sequer, que a protagonista teve consciência do que poderia realmente significar a presença do estranho viajante. É uma possibilidade perante a qual é mais fácil sacudirmos a cabeça: «Não, não foi isso!»; as explicações plausíveis e rotineiras acabam por ter a última palavra.
Contudo, como na tarte de requeijão, em que o delicado sabor ia e vinha, quase se completando mas nunca se oferecendo inteiramente, também aqui há uma verdade em que quase tocamos. A subtileza na escrita é precisamente isto.
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