quarta-feira, 31 de agosto de 2011

IRIS MURDOCH: UMA CABEÇA DECEPADA


Iris Murdoch, curiosamente, é uma autora que nunca chamara por mim. Havia boas razões para que eu lhe prestasse atenção: estudante de Literatura Clássica, que se dedicaria, mais tarde, à filosofia, sob orientação de nada menos que Wittgenstein, Iris Murdoch escreveu ensaio, poesia, teatro e romance, deixando-nos páginas onde, perante as escolhas e os actos de personagens capturadas na armadilha de situações inesperadas, se abre um terreno frutífero de reflexão moral.

Talvez temesse precisamente isso: um excesso de filosofia a contaminar os romances, com longas e densas tiradas na boca de personagens. Enganei-me. Murdoch é subtil. E este romance - muito possivelmente o primeiro que li dela - conta uma história no limiar do verosímil, de uma intensidade russa, segundo uma trama complexa, mas que nem por um momento nos fatiga ou desinteressa. Por um lado, porque é absolutamente surpreendente: Iris Murdoch vai virando esquinas que nos colocam em face daquilo que o protagonista - e narrador - não tinha previsto, nem, precisamente, o leitor.

O que está em causa é tão-só a civilidade: até que ponto as relações humanas - quando expostas ao fogo da paixão, da traição, da culpa, do ciúme e do medo, sob o contínuo e secreto desígnio de uma luta pelo poder de pessoas sobre as pessoas - podem «resolver-se» civilizadamente; como se fosse possível uma generosidade e uma compreensão quase ilimitadas, um perdão ou uma aceitação que evitassem sistematicamente o escândalo, a raiva. Como se os conflitos de amor e poder pudessem concertar-se amigavelmente. Ou, pelo contrário: até que ponto toda a generosidade e perdão são ilusórios, toda a compreensão e aceitação de um novo estado nas relações não implica um recalcamento de fúrias primitivas e implacáveis desejos de vingança.

Sob o signo de Medusa - Honor Palmer é uma personagem extrema, capaz de uma atracção horrorosa e incompreensível -, Uma Cabeça Decepada é um romance impregnado de uma aura mitológica que o torna, paradoxal e estranhamente, próximo de nós, de uma perturbadora autenticidade: trabalhar os mitos é, de certa forma, redescobrir, mais do que o "paradigma", a própria alma de certos actos e relações humanos.

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