quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

EÇA DE QUEIRÓS: A CAPITAL



Às vezes, pergunto-me se não foi com Eça de Queirós que aprendi a captar o cómico das coisas. Sim, eu sei, a génese do meu sentido de humor, valha ele o que valer, tem uma impagável dívida que contraí com o meu avô, o meu tio, o meu irmão, o meu primo. (Deve ser um humor excessivamente masculino, este que só parece ter como referência os homens da minha família); mas, em última análise, avô, tio e primo formaram-se na leitura de Eça de Queirós, citavam-no abundantemente, lembravam e imitavam falas como: «Homem, deixe-me olhar para si, que você é um monstro» (Alves & Cia.), ou: «Para ver as igrejas, Titi, para ver as igrejas» (que é a justificação apressada do hediondo Rapozão, quando, em A Relíquia, cai na asneira de dizer à tia, rica e beata, que gostaria de ir a Paris, esse «antro de perdição!», como exclama imediatamente a velha senhora).

É difícil, depois de o ler, não ficarmos a falar e a escrever como Eça, com a sua ironia incisiva e cáustica, sintetizada em frases breves, implacáveis, sob a aparência inocente e anódina que lhe advém dos diminutivos e das expressões típicas de velhas, padres e arrivistas lusos. É difícil que não nos deixemos penetrar pelo seu veneno saudável. É difícil que, a prazo, a sua visão do ridículo da hipocrisia não se aproprie dos nossos próprios olhos.

Todo o Eça me foi importante. O livro que ainda hoje prefiro é o mais queirosiano da sua obra; não me faz a menor confusão que, em outro sentido, secreta e objectivamente, possa até ser o menos queirosiano de todos. Falo, evidentemente de A Capital: se este romance, publicado postumamente, teve já demasiada intervenção de algum descendente (que o terá rescrito, mais do que revisto), a verdade é que o que ficou e aí está é, no espírito e na letra, puro Eça de Queirós.

Não deixa de ser tocante a história do «rapaz magro, de olhos grandes e melancólicos» e um sugestivo velho «paletó cor de pinhão», que, acreditando na poesia que lhe transborda da alma, vem à capital em busca da oportunidade de publicar a sua obra. A catadupa de gente que o despreza, ou que o quer converter a algo, ou que deseja simplesmente aproveitar-se da sua ingenuidade e do seu sonho, ou que o ama, ou que o ridiculariza, ou que o expõe, ou que o agride, a sombra de um amor ideal e impossível, a descrição de certos hotéis ou de certos restaurantes, infectos e absurdos, ou das situações em que os equívocos se reproduzem como coelhos, fazem de A Capital um romance em que o trágico e o cómico genialmente se unem naquela substância perante a qual nunca sabemos se havemos de chorar ou de rir.

Detenham-se, por exemplo, na narração de um jantar que se irá preparar às custas de Arturzinho, para que este se dê a conhecer (e à sua obra) à sociedade ilustre e cultivada de Lisboa. «Aperfeiçoavam o plano primitivo: além da leitura, poderia haver música.; seria necessário convidar o Sarrotini; para fazer um brinde à imprensa, convida-se o Carvalhosa! E Artur via elevar-se pouco a pouco aquela festa, como um grande troféu que se orna. Melchior acabou por afirmar que a coisa "havia de dar brado no país!"»; e vejam, com um horror movido a gargalhadas, o desequilíbrio em que se vai fazendo esta festa até um certo fim, que eu não deverei - por muito que me apeteça - aqui revelar.

Regresso sempre a Eça de Queirós. O mundo dá voltas, descubro - felizmente - autores novos (que são muitas vezes, por paradoxo, autores bem antigos), sigo variados rumos, rio-me de outras comédias e de outros comediantes: mas, inevitavelmente, retorno a Eça. Leio a meu filho umas páginas de Alves & Cia., um pouco espantado de que ele não ria como eu, retomo pela quinta vez a leitura integral de Os Maias, vasculho as cartas mais divertidas de Fradique Mendes. E folheio capítulos de A Capital. Convivo com o Ega, o Alves, o Rapozão, o Fradique, a viúva Pacheco (num texto absolutamente extraordinário). Busco esse inolvidável Pacheco, homem dado por brilhante, em Portugal inteiro, embora nunca tivesse escrito ou dito algo que se aproveitasse, porque, avaro, aferrolhava no crânio, como num cofre, as suas melhores ideias e as mais interessantes frases. E, pelos olhos do autor, vejo o Portugal que é essencialmente o mesmo de sempre. O mesmo de sempre.

1 comentário:

Anónimo disse...

adoro as suas obras