quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

E QUANTO ÀS OBRAS MAGNÍFICAS QUE NADA TÊM A DIZER?



Numa demorada discussão com o meu amigo Francisco, hoje, apercebi-me de que nos divide a importância da «mensagem».

Francisco exige mensagem à arte. Considera insatisfatória uma obra que, mesmo tocando-lhe nas vísceras e nos sentimentos, não lhe fale igualmente à razão. A tudo tem de subjazer uma intenção - e o trabalho do receptor é sempre um trabalho hermenêutico, o desvendamento de uma narrativa intrínseca. Só faz sentido, para o meu amigo, o que é verbalizável. Aquilo de que se dirá: «Percebo o que queres dizer, autor».

Meu amigo entende que o objecto de arte que não contém um discurso a revelar é um objecto de arte menor e pobre. A Miró, Francisco preferirá sempre o Picasso da Guernica.

Do meu ponto de vista, pelo contrário, é menor & pobre uma arte que se deixe resumir a um discurso (ético, político, religioso, o que seja). A arte, mesmo quando contém uma concepção sobre o real no seu ventre, é arte na medida em que a supera, em que se torna essencial para além dessa concepção.

Francisco pede-me exemplos; digo-lhe: a expressão artística de Nietzsche é sempre maravilhosa, até quando, na minha perspectiva, está errada. Consigo fruir, fascinado, o movimento do seu pensar, mesmo nos momentos - frequentes - em que filosófica ou ideologicamente não estou de acordo com o conteúdo desse pensar. A poesia de Camilo Pessanha, que me prende e me deslumbra, não fala à minha razão. Interessa-me muito pouco semanticamente. Ligo-me a ela pela sua sonoridade, pela transformação das palavras em pura música.

E, finalmente, os surrealistas nunca me falaram à razão: falavam-me à desrazão. Nunca me interessaram pelo propósito, mas pelo despropósito. Até eles tinham um programa revolucionário? Quando começaram a tê-lo, começaram a escangalhar-se...

7 comentários:

Mariana disse...

Fiz, no mestrado, um curso maravilhoso sobre artes plásticas, e nele o professor dedicou umas três aulas seguidas a "Guernica": nunca pensei que uma obra pudesse trazer em si tanta carga simbólica. Ficou-me, sobretudo, a imagem do cavalo atravessado por uma lança, e sua relação com o feminino. Não é a mensagem, é outra coisa, do âmbito da percepção. Aquele cavalo atravessado por uma lança, na altura da garganta, ficou-me mais do que tudo. Algo de terrível está contido ali.

Jamil P. disse...

Essa é uma discussão bastante interessante, José. A mim, fale à razão, ao coração, ao sentimento, ao homem todo, o que mais importa na arte é que ela busque a universalidade. Que ela expresse a natureza do ser, digamos, segundo a visão subjetiva do artista, sem se afastar de um mínimo de objetividade, a qual permita essa comunicação racional, espiritual, sentimental, etc, com as pessoas de todas as épocas e lugares.

Beatrix Kiddo disse...

já o Breton era mais radical:
http://tenhoestadoalerwhitman.blogspot.com/2010/12/eu-andre-breton-me-confesso.html

ps. fiz o meu post depois de ler este (e a pensar nisto)

{anita} disse...

acho que as obras de arte, de uma forma ou de outra têm sempre algo a dizer, nós é que por vezes não estamos disponíveis para as ouvir...
mas isso é saudável, que dizer de uma mente disponível para tudo?
Há obras que se bastam a si mesmas, mas há outras menos narrativas, que ficam a boiar no verbo estar, congelam o tempo num instante e nunca chegam a contar uma história. Quando essas obras não comunicam imediatamente com o observador, quando não se dá o "clic", uma empatia imediata, é natural que se tornem distantes ou indiferentes.
Mas atenção, por vezes para "entrar numa obra" é necessário conhecer o contexto, o lugar da peça numa série ou o percurso do artista e as suas obsessões. Por vezes a obra não se basta a si mesma, e não se torna má por isso. obviamente uma obra de arte nunca nasce do nada, mesmo quando parece mesmo que é assim.
Eu, apesar de gostar muito de histórias, adoro a arte que me comunica um "estar"... e me provoca um "clic" instantâneo.

josépacheco disse...

perfeitamente de acordo, Jamil. Que se entenda que eu não afasto a arte que fala à razão. Não a prefiro é necessariamente a algumas obras que aprecio, embora não tenham mensagem, nem (quanto a mim) percam por isso.

já tinha lido o seu post, Beatrix, e pensado precisamente Que bonito, e que a propósito.

joão m. p. lemos disse...

Quando confrontado com os críticos ingleses que defendiam que o 'Lord of The Rings' era uma mitificação das suas experiências na 1ª Guerra Mundial, ou com os hippies americanos que declaravam a trilogia como um poderoso manifesto ecologista, Tolkien usava sempre uma palavra que gosto de manter por perto: aplicabilidade. O próprio Eco falava das histórias serem "máquinas de gerar interpretações". Porque não pensarmos toda a demais arte nos mesmos termos? E porque não incluirmos "coisa nenhuma, apenas isto mesmo" no leque de opções interpretativas da mesma máquina? Julgo ser interessante contemplar o quão ocidental é esta necessidade incontornável de uma bagagem semântica, obstáculo, muitas vezes, do viver directo da coisa em si. E pronto, esgotam-se-me as redundâncias para aqui comentar. Um grande abraço, amigo José.

{anita} disse...

Gostei muito da mensagem do João Lemos. acho que é por aí...