A Banda Desenhada sempre teve um lugar estranho e um estatuto ambíguo. Consumida, quase como provocação, pelos jovens da minha geração, dificilmente poderia ter importância no elenco da Arte séria. Era um pouco como o que o graffiti hoje é: uma forma de expressão irreverente, que os adultos teriam de odiar e desprezar e de que os mais novos se serviriam necessariamente como arma para desafiar a lógica e a estética dos pais.
Pergunto-me em que se tornará a BD - ou em que se tornou -, agora que já nem os jovens se interessam por ela, considerada obsoleta num mundo onde tudo se move tridimensionalmente. Provavelmente, um reduto de maluquinhos, fanáticos, fetichistas - ou (coincidente ou alternativamente) de académicos que fazem do Batman ou do Homem-Aranha objectos de dissertações carregadas de minúcias hermenêuticas.
Todavia, seria injusto que, neste blogue, longe em geral da Banda Desenhada mas sobre leituras (e não se «lê» uma BD, tanto quanto se «vê»?) não falasse acerca dessa arte que alimentou as minhas tardes intermináveis, me fez passar por mudanças bruscas de emoção, das mais subtis - ainda a ser compreendidas e treinadas pelo puto emocionalmente ignorante que eu era - às mais óbvias; povoou a minha imaginação e, sem dúvida, a ampliou, lhe deu recursos insuspeitados, lhe abriu corredores numerosos do espaço-tempo, lhe possibilitou sinapses improváveis.
Poderia falar de Tintim, o meu primeiro herói; ou de Corto Maltese, o meu último herói, e aquele em cujo grafismo despojado e sombrio mais trabalho me deu penetrar. Mas não. Acabarei por falar de Axle Munshine. Por causa das personagens; da ilimitação de mundos por onde se passeia o protagonista, em busca de uma quimera; por causa do desenho em que esses mundos alternativos nos são mostrados: e por causa da ideia que move as aventuras do «vagabundo dos limbos»: o que é o sonho senão indício de um universo alternativo, uma realidade pararela? E, posto este pressuposto, que sucede quando, no seu mundo, um homem [Axle] sonha uma mulher [Chimeer] cuja essência o ilumina e transtorna; que ele sabe que não pode deixar de existir, mas existe certamente alhures? Que sucede quando a pessoa a que nos sentimos mais intimamente ligados pertence a uma realidade de que estamos para sempre desligados, a que não acedemos nem provavelmente acederemos, um universo outro e para sempre outro?
Axle Munshine foi meu guia. Se não na vida prática, pelo menos no domínio da fantasia. Não o esqueci. Os seus álbuns desapareceram no tempo. Todos. Meu filho, a quem procurei mostrar alguns, numa biblioteca, não se interessou por esta longa odisseia intergaláctica em demanda do impossível. Ele é de uma geração para a qual os impossíveis não merecem demasiada atenção. Não sou Axle Munshine. Seria incapaz da sua insensatez. Mas, em teoria, não invejo a sensatez de meu filho.
2 comentários:
Tintim e Corto Maltese, não foram propriamente aquilo a que é habitual chamar "heróis". Terão sido, muito provavelmente, companheiros de viagens que me limitei a imaginar. Companheiros que a realidade - a minha realidade - não me permitia encontrar.
Axle Munshine também o foi, mas acabou por se projectar muito para além dessa condição. Foi um dos amigos com quem aprendi que a vida não se confina às 24 horas de cada dia que passa. Não se resume à precária acumulação dos calendários. Axle Munshine, afinal - porque os amigos não se dissipam no tempo - continuou a sê-lo. É-o ainda hoje!...
Não direi que é o meu melhor amigo, porque o mundo virtual foi generoso comigo. Deu-me a conhecer outros: Daniel de Fontanin; Larry Darrel e Caleb Trask. Todos eles - Axle também - preencheram a minha adolescência de uma forma que nem mesmo sei como definir.
Apenas posso dizer que, sem a sua "presença", a minha realidade não seria mais do que uma parcela do vazio.
...
E foi assim que, de súbito, acabei por viajar até dezembro de 2010. Uma boa surpresa, sobretudo quando, por aqui, o tempo continuou a avançar.
Obrigado por reavivar as memórias desta BD de sonho. Tenho 2 álbuns, que acabei de reler, passados 40 anos...
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