Agora que tenho andado sem leituras novas, acabando, simultaneamente, vários livros começados em diversas fases, interrogo-me sobre qual o livro de que gostaria de falar no blogue. Existe algum que me tenha marcado inesquecivelmente e ainda aqui não referisse? A pergunta, como perceberam, é uma ironia de efeito retórico. Existem inúmeros, claro. Aliás, deixem-me já tomar nota de alguns, para me lembrar mais tarde: A Montanha Mágica, de Thomas Mann. O Idiota, de Dostoievski. Os fabulosos: Canção de Amor de Mr. Prufrock, e: Terra Devastada, ambos de T. S. Eliot. E o Quijote? Ou o bizarro Almas Mortas, norteado por uma ideia absolutamente impagável?
Deixemo-nos de divagações. Duas razões me põem no trilho de um certo livro cuja leitura resgato hoje à memória: o facto de Beatrix citar amiúde esse autor; e o facto de me ter lembrado dele no decurso da discussão com Francisco (que aqui já também mencionei). Começo então por dizer de que autor se trata: Friedrich Nietzsche. Livros seus poderiam ser vários, de entre aquela série de Obras Escolhidas, numa tradução cuidada, que a Relógio D'Água editou. Mas decido-me: nenhum Nietzsche me influenciou como o Nietzsche de A Gaia Ciência.
Não que todos os meus conflitos com o filólogo-filósofo estejam definitivamente sanados. Não poderiam está-lo, uma vez que há poucos pontos comuns entre nós dois (perdoem-me a ousadia da comparação): ele é um filósofo e um escritor de génio e eu sou um leitor limitado; ele leva a sério a plenitude do pensar por si próprio, enquanto, pelo contrário, algo do espírito de rebanho faz parte da minha condição: Nietzsche, a despeito dos factores históricos e culturais que terão determinado o seu pensar, pensa sempre autónoma e indomavelmente. Já eu estou demasiado preso ao que a minha História e o meu tempo me ensinaram a «dever» pensar.
É Nietzsche que me ensina, aliás, a reconhecer em mim mesmo essa cobardia: «A reprovação da consciência», escreve ele, «mesmo entre os mais conscienciosos, é fraca em comparação com o seguinte argumento: "Isto ou aquilo é contrário aos bons costumes da tua sociedade". O olhar frio, a boca contraída da parte daqueles entre os quais e para os quais a pessoa foi educada, eis o que mesmo o mais forte teme. Que é que ele verdadeiramente receia? O isolamento! Este argumento é capaz de abalar mesmo os melhores argumentos para uma pessoa ou para uma causa. Assim se exprime, em nós, o instinto gregário.» [A Gaia Ciência, # 50]. Mas, talvez precisamente por causa da auto-crítica a que ele me conduz, detecto, nos seus textos, a respiração oposta, a inteligência contrária ao «instinto gregário», a liberdade e a coragem que chamam por mim, comigo se confrontam e nunca me deixam dormir.
A Gaia Ciência é uma poesia singular: escrito em parágrafos, tão ao jeito de Nietzsche, alguns brevíssimos, outros relativamente longos, e naquele tom religiosamente ateu, aforístico e arrogante que o caracterizam, este livro compraz-se com o paradoxo e a constante deslocação de ângulo (frequentemente: inversão) relativamente àquele em que assenta o hábito e o senso comum. É fascinante seguir a lucidez e a habilidade subtis de uma tal operação de mudar de enfoque, da procura de um olhar fresco e sem lastro, desmistificador, irónico e perigoso. É uma poesia (insisto: muito mais do que uma filosofia) à procura da alegria do saber: uma alegria que nos parece impiedosa e injusta, porque é sempre a assunção da vitalidade e da força que empurram «continuamente para longe de nós algo que quer morrer».
A Gaia Ciência é - foi sempre, para mim - o livro de um inimigo. Um inimigo fortíssimo e sem o qual teria ficado mais pobre. Não é qualquer um que consegue ser tamanho e tão digno inimigo: competente e completo. Digo-o com o reconhecimento e o carinho que lhe são devidos. Gosto muito dos meus amigos. Todavia, sei que - raramente, mas às vezes - surgem inimizades que fazem mais pela nossa evolução do que algumas amizades.
1 comentário:
Já aconteceu comigo.
Enviar um comentário